Reproduzindo um texto interessante acerca da exploração de ouro no Brasil Colonial e as formas de buscar burlar as cobranças de impostos do Tesouro Português. AS estratégias para o não pagamento das taxas eram as mais variadas, onde nem mesmo os "santos" escapavam de transportar ouro ou pedras preciosas nas esculturas que eram ocas. Muitas e muitas toneladas de ouro e pedras preciosas saíram do sudeste brasileiro, principalmente, com destino a Europa nesse período do século XVIII. Ontem como hoje, as altas taxações de impostos acabam gerando um ciclo vicioso de sonegação, que nem sempre acaba sendo fiscalizado de maneira eficaz, pelas alternativas, sempre criativas na maioria dos casos, de fugir da fiscalização.
Ciclo reciclado
Enquanto Brasil se prepara para novo ciclo do ouro, lembre como trambiqueiros de toda espécie armaram variadas formas de falsificar e desviar o ouro mineiro
21/11/2011
Por Paulo Cavalcante
Extrair ouro e diamantes cumprindo as regras e pagando os impostos estipulados pelo Estado ou fazê-lo de modo ilícito, praticando o descaminho. Estas eram as duas faces do mesmo movimento, cujo nome é exploração. Nas Minas Gerais do final do século XVII e das primeiras décadas do XVIII, todos queriam ouro. A qualquer preço.
Os próprios representantes do Estado português – governadores, ouvidores, provedores etc. –, cuja missão era disciplinar a extração e assegurar a ordem social, contribuíam para desviar as riquezas da Fazenda Real (a Receita Federal da época).
Ordenar a extração significava estabelecer a desordem da exploração. O funcionário empenhado em dar cabo de “execrandos delitos” (descaminhos e contrabando) precisava conviver com eles para melhor extingui-los. O funcionário que cunhava as moedas dentro da Casa da Moeda falsificava-as por fora. O homem de negócios que arrematava os contratos e fazia os pagamentos prometidos à Fazenda Real sonegava o gênero – sal, por exemplo – ou dava livre trânsito ao ouro em pó, no caso do contrato das passagens (uma espécie de pedágio da época).
Os descaminhos eram numerosos e variados. Quanto mais o Estado português apertava o cerco para assegurar a sua arrecadação, aí mesmo é que os desvios do ouro prosperavam, com extrema criatividade. O senso comum tornou notória a imagem do santo de pau oco como símbolo maior dos descaminhos. Imagens ocas de santos supostamente recheadas de ouro e diamantes nos servem mais como explicitação da contradição entre dois traços correntes na sociedade colonial – o fervor religioso e a cobiça material – do que como comprovação de práticas relevantes de evasão.
'Negras de tabuleiro'
Como a sociedade colonial era escravista, os trabalhadores negros encarregados da mineração eram vistos como os principais “passadores” (descaminhadores) de ouro e diamantes. Ouro em pó salpicado no cabelo de mulheres negras, pepitas e diamantes desviados no pequeno comércio dos povoados e das lavras – especialmente pelas chamadas “negras de tabuleiro”, que vendiam comidas e bebidas – também foram modos de descaminhar a riqueza extraída da terra. Este último era tão forte e disperso que foi objeto de uma proibição publicada em 31 de julho de 1733, no Arraial do Tijuco, pelo ouvidor geral José Carvalho Mártires:
Mando que nenhuma pessoa de qualquer qualidade ou condição que seja mande escravas ou escravos vender do Corgo das Lages em diante, gênero algum de comestíveis, ou bebidas; pena de que toda a escrava ou escravo que for achado do lugar referido em diante, vendendo os referidos gêneros, ser presa, e pagarem seus senhores cem mil réis de condenação (...) além desta pena serão os ditos escravos açoitados no lugar mais público deste Arraial.
Outra forma muito eficaz de desvio foi a fabricação de colares para evitar o pagamento do quinto. Recheadas de colares ou cordões, as pessoas circulavam e propiciavam a fuga do ouro para Portugal em seu próprio corpo. O recurso foi classificado por funcionários da Coroa como “mui caviloso” (ardiloso). Estava claro que “os tais cordões não servem para uso e ornato das pessoas, senão para por este meio usurparem os ditos quintos”, concluiu o rei D. Pedro II, em 1698.
A maneira mais espetacular de desviar ouro era falsificar moedas. Encontravam-se moedas falsificadas de diversos tipos: vazada, cerceada (cujas bordas eram raspadas para se ficar com o ouro), com peso reduzido ou fundida com metais considerados baixos (como cobre, níquel e estanho).
Moedas de ouro falsas
Em 1708, o juiz da Casa da Moeda do Rio de Janeiro informou ao Conselho Ultramarino que recebera quinze moedas de ouro de 4 mil réis provenientes de São Paulo para serem examinadas por parecerem falsas. Feito o exame, constatou-se a fraude. Suspeitava-se que as tais moedas haviam sido cunhadas na fábrica de um estrangeiro. O assunto era sumamente grave, não só porque as moedas podiam enganar muita gente, mas também porque a presença de estrangeiros na costa ao sul do Rio de Janeiro começava a se intensificar, e a possível instalação de uma fundição falsa seria um indesejável sinal de enraizamento desses forasteiros.
Mas a fábrica de moeda falsa de que realmente se tem notícia não foi obra de um estrangeiro. Resultou da ação de um “bom português”, Inácio de Souza Ferreira, e de uma grande rede de relações operando sob a proteção insuspeita do próprio governador das Minas Gerais, D. Lourenço de Almeida (1721-1732), e configurando uma “sociedade de contrabandistas” com conexões internacionais. D. Lourenço, a propósito, retornou riquíssimo a Portugal, com bagagem reluzente, no fim do seu governo. Estes sim, e não os escravos, foram os grandes descaminhadores. Nesse caso, a moeda era falsa, mas não era ruim. Ou melhor, só era falsa porque não havia sido cunhada na fábrica oficial. Ao que tudo indica, a moeda da fábrica de Inácio era de qualidade e, certamente, teve grande aceitação e circulação (saiba mais na página 34).
Ainda assim, a preocupação com os estrangeiros era pertinente. Afinal, a intensa concorrência comercial entre os Estados europeus tornou-se particularmente desafiadora para Portugal quando foram descobertos ouro e diamantes na sua Colônia americana. Era para Minas que todos queriam ir. A falsificação de moedas tinha o objetivo de retirar diretamente o ouro da Colônia, desviando-o do mundo português. E essa prática não se destinava unicamente à América. Isso já havia ocorrido na Costa da Mina, na África, no início do século XVIII. O problema é que tanta gente estrangeira, de diferentes procedências (franceses, ingleses, espanhóis, holandeses, etc.), iam e vinham à costa da América, e eram tão vultosos os desvios que se temia não só o descaminho, mas a perda do controle das próprias Minas para uma associação entre colonos e estrangeiros, em particular os franceses. Esse é o limite extremo do convívio entre ordem e desordem, entre comércio legal e descaminhos: quando estes ameaçam o negócio português da colonização.
As ilegalidades seguiam uma lógica mercantil. O ouro ilícito imediatamente entrava no circuito comercial geral. Por exemplo: o ouro saído dos ribeiros desimpedia-se dos controles locais, vencia as serras da Mantiqueira e do Mar, perpassava os registros nas passagens dos rios Paraibuna e Paraíba, entrava no Rio de Janeiro, desvencilhava-se de novos controles, alcançava os negociantes estrangeiros, desembaraçava-se da Alfândega, embarcava nos navios da frota, aportava nas ilhas do Atlântico ou em Lisboa, desembaraçava-se novamente da Alfândega, prosseguia para Londres ou Amsterdã, e de lá rumava nos navios anglo-holandeses reunidos no chamado “comboio de Esmirna” (ou Izmir) em direção ao Mediterrâneo, para o intercâmbio neste e em outros portos da península da Anatólia (Turquia), aos quais chegavam as rotas comerciais terrestres do Levante com sedas da Pérsia, entre outros artigos.
Impostos pesados, tradição brasileira
O maior benefício no ato de driblar a lei era evitar o pagamento do quinto – os 20% devidos ao rei –, cujo “recibo” era um cunho real, marcado na barra de ouro oficialmente fundida. Por isso, um dos mais engenhosos e bem-sucedidos descaminhos era falsificar o próprio cunho. A posse de um cunho falso garantia ao seu dono o poder de legalizar toda e qualquer barra fundida sem que o Estado sequer sentisse o cheiro da sua parte devida. Um dos casos mais interessantes de falsificação aconteceu em São Paulo, em 1698. Os autores da fraude foram o vigário de Taubaté, José Rodrigues Preto, um monge beneditino chamado Roberto e um certo Domingos Dias de Torres. Nada surpreendente que homens de religião deixassem de lado suas prioridades espirituais para golpes do gênero. A cobiça não discriminava condição social ou credo. E eles ainda se beneficiavam de um privilégio legal: os religiosos não podiam ser punidos pelo governador, pois estavam fora da sua jurisdição. Mas assim como burlar a lei era prática disseminada, cumprir os ritos jurídicos também não era tão obrigatório. Resultado: os envolvidos foram presos pelo governador Artur de Sá e Meneses (1697-1702). Logo em seguida, fugiram. Mais tarde, o rei D. Pedro II, “o Pacífico”, resolveu perdoar a todos e deixar por isso mesmo: “Vos ordeno que toca ao tempo passado se não fale mais neste delito”, escreve ao governador em 1700.
Tamanha misericórdia não foi caso isolado. Afinal, ignorar normas e decretos era comportamento rotineiro até entre os agentes do Estado. Bom exemplo é a própria criação das casas de fundição para arrecadar o quinto. Elas foram instituídas em Minas por um bando publicado em Vila Rica no dia 18 de julho de 1719, conforme a lei de 14 de fevereiro de 1719. Entretanto, só funcionaram de fato a partir de 1º de fevereiro de 1725. Por quê? Por causa da resistência dos potentados locais. Ninguém queria ver a sua parte do butim diminuída. Mas não houve jeito, e juntamente com as fundições veio a ordem de proibir a circulação de ouro em pó (por sua natureza, muito fácil de contrabandear). Nem por isso o ouro deixou de escorrer por entre os dedos do Estado: seus guardas, nos registros, transportavam ilegalmente aquela pulverizada riqueza... escondida dentro dos botões dos uniformes!
A ousadia dos descaminhos do ouro não conhecia limites. O lance mais espetacular ocorreu na presença do próprio rei D. João V. A sua quinta parte arrecadada dos mineradores de Cuiabá em 1727 havia sido acondicionada em quatro cunhetes (caixotes de munição de guerra). Recheados de ouro, eles, obviamente, estavam muito bem protegidos: guardados em cofres-fortes, sob a rígida vigilância de muitos guardas, foram colocados com toda a cerimônia junto ao trono do rei, sob o olhar cobiçoso do séqüito de cortesãos e representantes estrangeiros. No momento em que D. João ordenou a abertura dos cofres... surpresa geral: o ouro havia desaparecido! Em seu lugar, diante de todos, revelou-se aos pés de Sua Majestade um metal nada nobre – o chumbo. Dá para imaginar a cara rei...
Mas a melhor época para a prática corriqueira dos desvios era a das frotas. Navios fundeados, alfândegas abarrotadas e mercadores por toda parte: no caudal das gentes fluíam os negócios conforme acertos e desacertos. Tudo tão grave e insólito que o governador do Rio de Janeiro, Luís Vahia Monteiro (1725-1732), um dos maiores combatentes contra os descaminhos, sugeriu que se pusesse sob contrato o serviço das “tomadias”, isto é, as operações de repressão dos descaminhos. Vahia propôs ao rei que, tão logo a frota ancorasse e os navios estivessem protegidos pelos guardas, ele deveria “mandar pôr Editais para arrendar as tomadias do ouro em pó porque estou certo que o contratador achará os meios para o descobrir, e sempre faltam quando as administrações se fazem para Sua Majestade adonde todo mundo é liberal em furtar, e muito mais em dissimular os furtos”. Na prática, isso significava, em termos atuais, a privatização do poder coercitivo legitimamente exercido pelo Estado. Uma total inversão.
Ao contrário de Vahia, quantos governadores não dividiram sua lealdade entre o rei e seus próprios bolsos, ou melhor, as suas “casas”? A “casa” em questão compunha-se não só da família, como a compreendemos hoje, mas de todas as demais pessoas ligadas por laços de sangue e de afinidade que gravitavam em torno dela. Pelo poder do ouro, as “casas” das autoridades cresciam e aumentavam seu prestígio social. Tantos o faziam, e de modo tão explícito, que um dos mais destacados homens do mundo português na época moderna, o padre Antônio Vieira (1608-1697), dedicou-lhes uma parte do famoso “Sermão do Bom Ladrão” (veja no fim desta matéria).
O que concluir disso tudo? O rei absolve os descaminhadores. Governadores e oficiais furtam em todos os tempos e por todos os modos. Então, será que o descaminho é mesmo uma aberração do processo? Ou uma característica inerente e indispensável à própria colonização? Provavelmente, é a segunda hipótese. A extração de ouro e diamantes apenas potencializou uma característica presente na Colônia desde o início.
Não era coisa de negro nem coisa de pobre. Não era vício moral nem sinal de cultura bastarda. Era prática branca, européia, chegou à América com a expansão comercial e com o processo de formação do capitalismo, e aqui contribuiu, desde o primeiro momento, para a instituição da sociedade colonial. Por isso suas raízes são tão profundas.
A prática do descaminho e o chamado exclusivo comercial (o tão conhecido “pacto colonial”, segundo o qual as metrópoles reservavam para si próprias o comércio ultramarino) são dois lados da mesma moeda. Uma moeda que, falsa ou verdadeira, sempre levou consigo o ouro do maior quilate.
Nenhum comentário:
Postar um comentário