Metamorfoses Históricas: História, livros, músicas, cinema e motos!

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sábado, 27 de novembro de 2010

Os exércitos mercenários

Embora não seja uma novidade nas guerras, é cada vez mais presente a participação e a influência de mercenários e as corporações que os contratam no jogo geopolítico mundial. A presença destes grupos se tornou mais visivel com as guerras no Afeganistão e Iraque. Para quem desconhecia a presença ou existência destes grupos, o texto abaixo apresenta algumas das implicações no jogo de poder da atualidade. As guerras se modificaram ao longo do século XX e ganham novos contornos nesta primeira década de século XXI.


GUERRA NO AFEGANISTÃO (03 de Fevereiro de 2010)
Os exércitos mercenários

por Marie-Dominique Charlier

Em 19 de agosto de 2009, o The New York Times revelou que a CIA havia utilizado, em 2004, funcionários da Blackwater como parte de um programa secreto, com o objetivo de descobrir pistas e assassinar dirigentes da Al-Qaeda. Desta forma, essa empresa de segurança privada contribuiu para as missões da organização estadunidense de treinamento e espionagem, cobrando milhões de dólares pelo serviço, sem nem ao menos ter capturado ou assassinado um único ativista.

Após as polêmicas em torno de sua atuação no Iraque, a Blackwater mudou de nome, tornando-se a Xe Services. À época, cinco de seus funcionários que, em 16 de setembro de 2007, acompanharam um comboio do Departamento de Estado americano, foram acusados de ter aberto fogo sobre a multidão na praça de Nousour, em Bagdá, matando entre 14 (segundo os resultados do inquérito americano) e 17 civis (segundo o dos iraquianos). Apesar desse erro, e de muitos outros, esses que chamamos de “empreiteiros” ou “terceirizados” continuam atuando no Afeganistão, onde empregam as mesmas práticas: recentemente, quatro homens da Blackwater, sob o disfarce de uma empresa chamada Paravant, atiraram contra um veículo, causando uma morte e deixando quatro feridos. E o mais curioso é que a maneira nebulosa como foi confeccionado o contrato de atuação dessa empresa permitiu que os envolvidos pudessem se livrar das justiças nacionais e militares de uma só vez.

Após sua aparição, nos anos 1990, as sociedades militares privadas (SMP)
1 experimentaram um desenvolvimento rápido, e hoje elas encarnam um papel essencial nos conflitos, tanto na esfera militar quanto no âmbito econômico. O desempenho mundial nesse setor gira em torno dos 70 bilhões de euros anuais. Seu crescimento foi favorecido pela diminuição drástica dos efetivos do exército americano no final da Guerra Fria e pela decisão do ex-Secretário de Defesa, Donald Rumsfeld (2001-2006), em adotar a política de “racionalização” da ferramenta militar por meio da transferência de várias competências para o setor privado. Sua meta era contornar o controle do Congresso e da opinião pública americana e, além disso, facilitar o emprego “mais flexível” de pessoal nas operações clandestinas.

O número estimado de efetivos das SMP empregados no Afeganistão oscila entre 130 mil e 170 mil homens2, fazendo desse país o segundo maior palco de atuação depois do Iraque3. A superação virá em breve, com o envio suplementar de 30 mil soldados americanos acompanhados por 56 mil novos “empreiteiros”. Esses efetivos representarão 69% do pessoal do Pentágono atuando no Afeganistão – a maior porcentagem de toda a história dos EUA.

As mais conhecidas dessas sociedades – Blackwater, DynCorp, Military Professional Ressources Inc. (MPRI), Kellogs Brown e a Roots (KRB)4 – estão reagrupadas no seio da Private Security Companies of Afghanistan. Suas atividades drenam uma parte substancial dos fundos destinados à reconstrução do exército nacional afegão (ANA). Embora elas devessem atuar supostamente como auxiliares da coalizão e do exército estadunidense, os seus estatutos jurídicos continuam muito obscuros.
Terceirização das tropas

Por trás de suas soluções já prontas, do tipo “pré-fabricadas”, existem interesses econômicos colossais que orientam a escolha pela guerra nessa região. Financeiramente, existe uma convergência de interesses entre as SMP e os grandes grupos industriais americanos: a maioria dessas sociedades foi adquirida seguindo uma lógica econômica clássica de fusões/aquisições e se especializando a partir de 2001.
Além disso, o surgimento dessa “terceirização” coincide com o interesse dos militares americanos em sua reconversão: o pessoal das SMP geralmente é composto por ex-oficiais. Estes, por sua vez, organizam suas carreiras dentro de uma continuidade natural entre os setores público e privado. As conexões privilegiadas entre os ex-oficiais superiores americanos em operação no seio das SMP e o mundo político do Pentágono permanecem. Essa proximidade lhes confere facilidade de acesso em matéria de informações confidenciais e lhes garante também certa impunidade.

“Os exércitos americano, britânico e outros estão no Afeganistão para ganhar a guerra. Para nós, quanto mais a situação da segurança se deteriorar, melhor será!”, explicou um terceirizado britânico.
5 Algo que não condiz exatamente com as ideias de estabilização do conflito, nem com a “afeganização da paz”.

Por causa de seus efetivos, seus vínculos diretos com os Estados-Maiores de diferentes organismos e as conexões internacionais, essas SMP estão em uma posição que lhes permite influenciar as decisões militares ligadas às operações. Encontram-se, assim, funcionários da MPRI6 dentro dos escalões hierárquicos da Força Internacional de Assistência para Segurança (Fias, da Otan – Organização do Tratado do Atlântico Norte) e das forças de segurança afegã. Eles atuam em diversas frentes, junto aos Estados-Maiores e às autoridades locais, na doutrinação do ANA, no seio do Combined Training Advisory Group (CTAG), na formação de chefes de batalhões no coração do Kabul Military Training Center (KMTC) ou mesmo oferecendo instrução de especialistas.

Fortes o suficiente por terem acumulado conhecimentos aprofundados sobre a região em conflito, após missões longas, de dois a quatro anos, no Afeganistão, essas empresas dispõem de uma memória única sobre a situação. Uma experiência indispensável aos Estados-Maiores interligados, cujas missões na região raramente excedem seis meses. Tais empresas permitem coordenar, regular e até mesmo promover a ação de outras SMP, além de orientar a visão dos oficiais no sentido que lhes seja mais conveniente.

Segundo fontes oficiais do Ministério da Defesa francês, o orçamento destinado à MPRI para a redação da doutrina militar do exército afegão chegou a US$ 200 milhões; para o treinamento das forças armadas locais, gastou-se em torno de 1,2 bilhão de euros. As SMP, portanto, não têm nenhum interesse na estabilização da situação, nem que a “afeganização” do ANA funcione. Caso contrário, isso diminuiria muito a necessidade dos agentes “terceirizados” e iria, logicamente, de encontro a seus interesses financeiros. Essas empresas se protegem muito bem quando transmitem seus conhecimentos e preferem suprir minimamente os organismos afegãos em vez de lhes dar conselhos úteis.

O chefe de gabinete do Afghan National Army Training Command (ANATC), general Gulbahar, afirmou que não dispunha de nenhum prazo para aprovação nacional da redação da doutrina militar do ANA. Claro: o interessado não se insurge contra essa tutela. Trata-se de coronel ocupando funções de general, e teria tudo a perder caso se colocasse contra essa situação.
A MPRI dispõe, então, de um verdadeiro monopólio da situação, algo que lhe permitiu legitimar sua estadia duradoura na região. Mas a empresa também sabe se mostrar solidária: a MPRI redigiu a doutrina logística do ANA, e cita a DynCorp como organismo encarregado em apoiar sua força aérea, sem restrições e sem limite de tempo.

O tópico “Treinamento” é também um componente muito rentável. As empresas recrutam, formam e utilizam 800 professores para o programa de luta contra o analfabetismo no ANA (Literacy Program), mas a pesquisa sobre o retorno financeiro lucrativo faz com que as SMP atrasem o máximo possível a instrução dos inscritos. Aparentemente, a capacitação de formação
interna do exército afegão não faz parte das urgências... A mesma situação ocorre em matéria de logística (assegurada pela RM-Asia), outro ponto forte do monopólio das empresas militares privadas: nenhum limite de tempo foi imposto para a formação dos técnicos afegãos.

Além disso, os interesses financeiros das empresas que empregam alguns milhares de funcionários divergem das questões militares da Fias: não que elas contem com uma vitória rápida, mas as SMP também não desejam mudanças muito bruscas do dispositivo operacional. Elas precisam poder agir sobre os eventos em curso e influenciar, se necessário, as orientações em nível operacional7 e estratégico.

Seguindo essa linha de pensamento, elas se beneficiarão, no futuro próximo, de uma nova chance para consolidar suas posições. A sistematização de instrução das unidades do exército por agentes públicos ou privados foi lançada pelo general britânico Baverstock, comandante do grupo de treinamento (CTAG, Combined Training Adviser Group) situado perto de Cabul. Essa evolução implica um crescimento considerável de necessidade de instrutores e obras, portanto novas oportunidades para os principais “terceirizados” que já haviam previsto utilizar, na região do Afeganistão, os mesmos efetivos e meios empregados no Iraque.

Os novos contratados são recrutados a fim de elaborar os procedimentos de “retorno de experiência” (Retex) no coração do ANA. As preciosíssimas informações assim coletadas vão lhes oferecer uma visão de todo o conjunto do cenário local, assim como mais uma ocasião para reforçar suas posições estratégicas dentro do quadro doutrinário.

Enfim, como foi o caso no Iraque, o emprego de “soldados de aluguel” só contribui para desacreditar a intervenção internacional. Basta alguém circular em algum veículo pelas ruas de Cabul para se convencer disso. Provocantes e hostis, o comportamento, a atitude e o equipamento dos funcionários de certas SMP se assemelham em muito às armas cinematográficas mais caricatas.
8 O efeito é devastador. “A população afegã não consegue diferenciar um soldado da Fias de um ‘contratado’”, observa um membro do parlamento afegão. “A confusão é evidente e não gera nenhuma vantagem para a coalizão, reconhecida agora por ter combatentes privados, cujo comportamento por vezes é muito agressivo.”

Como combater um movimento de insurreição e legitimar essa ação quando os países da força de intervenção, representando a Organização das Nações Unidas (ONU), empregam mercenários cuja motivação não é exatamente o retorno da paz?

Levanta-se aqui mais uma questão ética
9 sobre o pessoal empregado e sobre segurança. O escândalo envolvendo a prisão de Abu Graïb, onde mais da metade dos interrogadores implicados, bem como o grupo de tradutores, provinham de um recrutamento “externo” e trabalhavam para as sociedades Caci e Titan, ressalta ainda mais o abismo que se abriu com relação à ética em matéria de conflitos. São os resultados da transição de uma terceirização de serviços para uma terceirização da guerra.

Marie-Dominique Charlier foi conselheira política no Afeganistão, de fevereiro a agosto de 2008, atuando próximo ao Comandante-Geral da Force Internationale d’Assistance à la Sécurité (Fias); doutora em Direito Público, é encarregada de estudos no Institut de Recherche Stratégique de l’École Militaire (Irsem) em Paris.

1 Ler Sami Makki, “Sociétés militaires privées dans le chaos irakien” e François Dominguez e Bárbara Vignaux, “La nébuleuse des mercenaires français”, Le Monde diplomatique, respectivamente, novembro de 2004 e agosto de 2003.
2 Segundo estudo do Congressional Research, utilizado por Walter Pincus em matéria para o
Washington Post (16 de dezembro de 2009).
3 Em 2007, o Departamento de Defesa americano utilizou no Iraque 185 mil desses subcontratados, por 160 mil soldados.
4 Auparavant é filial da Halliburton.
5 René Ourdant, “Les mercenaires mettent le cap sur l’Afghanistan”,
Le Monde, 21 de agosto de 2009.
6 MPRI, filial da L3 Communications, foi fundada pelos generais Carl Edward Vuono, antigo chefe do Estado-Maior do exército americano durante a I Guerra do Golfo, e Harry Edward Soyster, ex-diretor de informação militar. Essa companhia emprega mais de 300 ex-generais.
7 A arte operacional faz parte da arte da guerra. Ocupando uma posição intermediária entre a estratégia e a tática militar, está subordinada à estratégia e, por sua vez, determina as missões e orientações de desenvolvimento tático.
8 A semelhança com os “heróis” veiculados pelos filmes de guerra contemporâneos é efetivamente perturbadora.
9Jean-René Bachelet,
Pour une éthique du métier des armes, Vuibert, Paris, 2006.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O índio fora do foco da história

O índio fora do foco da história

Ricardo Carvalho 8 de outubro de 2010 às 17:28h

Para José Ribamar Bessa Freire, a lei que torna obrigatório o ensino da história e cultura indígena é um avanço, mas falta muito para vencer o preconceito

Em 2008, foi sancionada a Lei 11.645, que estabeleceu o ensino obrigatório de história e cultura indígena em todas as séries do Ensino Básico. A lei vem no sentido de complementar outra regulamentação, de 2003, que contemplava as temáticas referentes à cultura africana. O coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indígenas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), José Ribamar Bessa Freire, explica que, de modo geral, os temas indígenas sempre foram abordados nas escolas como uma “nota de pé de página carregada de preconceitos”. Nesta entrevista, concedida ao repórter Ricardo Carvalho, Bessa Freire defende a lei como uma conquista de setores da sociedade brasileira que lutam por esse reconhecimento há pelo menos duas décadas, mas faz questão de ressaltar: a lei é um passo importante, mas pode tornar-se ineficiente caso não venha acompanhada de material didático, atualização das licenciaturas e subsídios aos docentes.

Carta Fundamental: Qual a importância da aprovação da Lei 11.645 para o reconhecimento, pela escola, das temáticas indígenas e africanas?

Bessa Freire: Em primeiro lugar, a lei é uma conquista. Nós, que sempre lutamos para que a escola refletisse sobre essas questões, nos sentimos contemplados. No entanto, não basta só ter uma lei, porque, se existe a obrigação do ensino da temática indígena e africana nas escolas sem capacitação dos professores, sem pesquisa e sem produção de material para auxílio aos professores, o tiro pode sair pela culatra. A escola vai, obrigatoriamente, tocar numa temática que, sem preparo, pode até reforçar aqueles preconceitos e aquelas visões estereotipadas que se davam.

CF: Como a escola brasileira tratou os conteúdos indígenas até antes de eles se tornarem obrigatórios?

BF: Sucintamente, o índio na escola era uma nota de pé de página carregada de preconceitos. Se fosse uma nota de pé de página, mas correta, já teria ocorrido uma contribuição. Mas não, o índio estava fora do foco da história e, quando aparecia, era de forma preconceituosa. Eu me pergunto até que ponto essa escola não devorou a identidade dos brasileiros, na medida em que ignorou duas grandes matrizes formadoras da sociedade brasileira: a indígena e a africana.

CF: Desde quando existe esse esforço pela inclusão da história e da cultura indígena na sala de aula?

BF: É relativamente recente e está muito ligado ao próprio movimento indígena organizado. A partir da Constituição de 1988, abriram-se portas para essa questão. Naquele momento, existiam no País mais de 150 organizações indígenas. No meu entender, foi a conjunção e a atuação dessas organizações que surgiram. Até o fim dos anos 70, éramos nós – antropólogos – que falávamos por eles, inclusive porque não havia uma liderança que dominasse a língua portuguesa de forma articulada. Hoje, os índios não precisam mais de porta-vozes e o nosso papel agora é falar como aliados. Então, nos anos 80, fervilhou no País esse avanço do movimento indígena, que conseguiu, por exemplo, eleger no Rio de Janeiro um deputado federal, o Mário Juruna. Independentemente dos altos e baixos de seu mandato parlamentar, ele jogou o foco do País e da mídia sobre os índios. Isso contribuiu para que, finalmente, chegássemos em 2008 e incorporássemos a questão indígena numa lei que já existia para afrodescendentes, que estavam um pouco mais organizados politicamente. Chamo atenção para os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), nos anos 90, que tocaram no tema também, independentemente das críticas que possamos fazer.

CF: O senhor disse que é preciso dar subsídios para os professores aplicarem a lei. Quais deveriam ser esses subsídios?

BF: Primeiro ponto: interferir nos currículos de licenciatura em todas as universidades públicas e privadas. Segundo: jogar pesado em oficinas e cursos de atualização de professores, pois eles estão ansiosos, estão querendo novos conhecimentos. O terceiro é investir na pesquisa relacionada à temática indígena e o quarto, fazer com que essa pesquisa reflita na produção de material didático e paradidático.

CF: Em relação aos conteúdos, o que deveria ser abordado pelo professor com os alunos?

BF: É preciso, antes de tudo, desconstruir os equívocos que estão arraigados e internalizados e incorporar os avanços das disciplinas acadêmicas que tratam dessas questões, como antropologia, etno-história e linguística. Várias disciplinas produzem dissertações de mestrado e teses de doutorado, mas esses trabalhos não chegam aos professores, ficam retidos na universidade. Em relação aos conteúdos, o professor teria de trabalhar com arte indígena, literatura, poesia, história e línguas indígenas, os etnosaberes.

CF: Ainda na parte de conteúdos, para exemplificar, como o professor deveria abordar aculturação e identidade indígena na sala de aula?

BF: A antropologia trabalhava com essa noção de aculturação, entendendo por aculturação aquele processo de perda da sua própria cultura e migração para a cultura do outro. Mas o que se começou a criticar a partir dos anos 60 e 70? Lévi-Strauss diz que nenhuma cultura morre, apenas se transforma e se ressignifica. Nosso cotidiano está impregnado de empréstimos de outras culturas, mas isso não faz com que o brasileiro deixe de ser brasileiro. Ao contrário, ser brasileiro significa se apropriar daquilo que queremos ou nos é imposto e ressignificar isso dentro da nossa cultura. Isso ocorre para qualquer cultura, seja a brasileira, a norte-americana ou a francesa. Mas, quando chega na cultura indígena, não se permite que o índio aceite o menor elemento de uma contribuição de fora e continue sendo considerado índio. Porque existe um imaginário construído de ideal de índio, aquele da Carta do Descobrimento, de Pero Vaz de Caminha. Hoje, quando uma pessoa encontra um índio de carne e osso, diz que não é índio autêntico, porque tem como autêntica a imagem de 1500. Com esse critério, os portugueses não seriam mais portugueses porque ninguém se veste mais como Cabral, ou escreve e fala como Caminha. Por isso, a ideia do contato das culturas indígenas com a cultura nacional deve ser trabalhada nas escolas com uma perspectiva antropológica. Ou seja, toda cultura é dinâmica, está em permanente transformação e atualização.

CF: Os currículos de licenciatura estão preparados para lidar com a nova demanda gerada pela lei?

BF: As faculdades de educação não estão preparadas, e esta é a notícia ruim. A notícia boa é que estão começando a se preparar, porque existe uma pressão dos próprios professores dos ensinos Médio e Fundamental, dos alunos, da mídia e de nós, de dentro da universidade. Por exemplo, na UERJ, eu já ensinei uma disciplina chamada História Indígena, que não existe nos cursos de História das universidades brasileiras nem sequer como eletiva. Como compreender este país sem história indígena? Eram 10 milhões de índios no Brasil e 1.300 línguas. O que aconteceu com elas? A disciplina História Indígena dirige o foco sobre essa temática e capacita os alunos para entender um pouco esse processo. Outro exemplo: nós desconhecemos a resistência indígena ao processo de escravização. Tem uma tese de doutorado defendida na Universidade de Stanford, nunca traduzida para o português, com um apêndice de mais de cem nomes de líderes indígenas que, num espaço de 80 anos, lideraram rebeliões contra os portugueses só no Baixo Amazonas, e nós não conhecemos nenhum deles.

CF: A lei estabelece que os conteúdos referentes à cultura indígena sejam trabalhados em todo o currículo escolar, com ênfase nas áreas de Artes, História e Literatura. Como professores de outras matérias podem trabalhar a temática?

BF: Na UERJ, temos uma disciplina que discute a implementação da Lei 11.645, então eu tenho alunos de Física, Química, Artes, História, Filosofia e Matemática. Abrimos essa possibilidade, que é uma coisa muito rica. Os alunos dessas licenciaturas trazem problemáticas que, às vezes, não são as nossas, de quem está na área de Educação. Vem um aluno de Matemática e pergunta: “Professor, como os índios somam, multiplicam, enfim, como é a Matemática indígena?” Vem um aluno de Biologia e me faz perguntas sobre os mitos de criação do mundo dos índios, um aluno de Artes pergunta por que a arte indígena é considerada artesanato e não produção artística. Isso vai dando margem para discutirmos essa temática de forma muito mais rica.

CF: O senhor viveu por muito tempo no Peru. Existe uma diferença entre o reconhecimento dos conteúdos indígenas pela escola em relação ao Brasil?

BF: Os países andinos, em geral, estão mais avançados. O Peru, nos anos 70, oficializou a língua quéchua, que se tornou a língua oficial juntamente com o espanhol. O Peru criou um sistema de educação bilíngue que, com todos os altos e baixos, representou um avanço enorme para o país. Mas o Peru está avançado nessa questão até pelo peso demográfico dos índios em sua sociedade e pela visibilidade da cultura indígena em todos os campos. Houve um movimento muito forte de valorização do passado andino e isso é refletido em instituições como o Museo de la Nación e o Museu de Antropologia.


Violência no Rio: a farsa e a geopolítica do crime

Para nós que não moramos e não vivenciamos o cotidiano do Rio de Janeiro, o texto que segue trás algumas considerações que vão além do que a grande mídia hegemônica vem divulgando e mostrando nesta última semana acerca da violência urbana e as reações do Estado. "O inimigo é outro?" Mas quem é este outro? 

 Violência no Rio: a farsa e a geopolítica do crime
Coluna do Leitor 25 de novembro de 2010 às 20:52h

O leitor José Cláudio Souza Alves, sociólogo e pró-reitor de Extensão da UFRJ, contesta as avaliações que predominam sobre a onda de violência no Rio.

Nós que sabemos que o “inimigo é outro”, na expressão padilhesca, não podemos acreditar na farsa que a mídia e a estrutura de poder dominante no Rio querem nos empurrar.

Achar que as várias operações criminosas que vem se abatendo sobre a Região Metropolitana nos últimos dias, fazem parte de uma guerra entre o bem, representado pelas forças publicas de segurança, e o mal, personificado pelos traficantes, é ignorar que nem mesmo a ficção do Tropa de Elite 2 consegue sustentar tal versão.

O processo de reconfiguração da geopolítica do crime no Rio de Janeiro vem ocorrendo nos últimos 5 anos.

De um lado Milícias, aliadas a uma das facções criminosas, do outro a facção criminosa que agora reage à perda da hegemonia.

Exemplifico. Em Vigário Geral a polícia sempre atuou matando membros de uma facção criminosa e, assim, favorecendo a invasão da facção rival de Parada de Lucas. Há 4 anos, o mesmo processo se deu. Unificadas, as duas favelas se pacificaram pela ausência de disputas. Posteriormente, o líder da facção hegemônica foi assassinado pela Milícia. Hoje, a Milícia aluga as duas favelas para a facção criminosa hegemônica.

Processos semelhantes a estes foram ocorrendo em várias favelas. Sabemos que as milícias não interromperam o tráfico de drogas, apenas o incluíram na listas dos seus negócios juntamente com gato net, transporte clandestino, distribuição de terras, venda de bujões de gás, venda de voto e venda de “segurança”.

Sabemos igualmente que as UPPs não terminaram com o tráfico e sim com os conflitos. O tráfico passa a ser operado por outros grupos: milicianos, facção hegemônica ou mesmo a facção que agora tenta impedir sua derrocada, dependendo dos acordos.
Estes acordos passam por miríades de variáveis: grupos políticos hegemônicos na comunidade, acordos com associações de moradores, voto, montante de dinheiro destinado ao aparado que ocupa militarmente, etc.

Assim, ao invés de imitarmos a população estadunidense que deu apoio às tropas que invadiram o Iraque contra o inimigo Sadan Husein, e depois, viu a farsa da inexistência de nenhum dos motivos que levaram Bush a fazer tal atrocidade, devemos nos perguntar: qual é a verdadeira guerra que está ocorrendo?

Ela é simplesmente uma guerra pela hegemonia no cenário geopolítico do crime na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

As ações ocorrem no eixo ferroviário Central do Brasil e Leopoldina, expressão da compressão de uma das facções criminosas para fora da Zona Sul, que vem sendo saneada, ao menos na imagem, para as Olimpíadas.

Justificar massacres, como o de 2007, nas vésperas dos Jogos Pan Americanos, no complexo do Alemão, no qual ficou comprovada, pelo laudo da equipe da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, a existência de várias execuções sumárias é apenas uma cortina de fumaça que nos faz sustentar uma guerra ao terror em nome de um terror maior ainda, porque oculto e hegemônico.

Ônibus e carros queimados, com pouquíssimas vítimas, são expressões simbólicas do desagrado da facção que perde sua hegemonia buscando um novo acordo, que permita sua sobrevivência, afinal, eles não querem destruir a relação com o mercado que o sustenta.
A farsa da operação de guerra e seus inevitáveis mortos, muitos dos quais sem qualquer envolvimento com os blocos que disputam a hegemonia do crime no tabuleiro geopolítico do Grande Rio, serve apenas para nos fazer acreditar que ausência de conflitos é igual à paz e ausência de crime, sem perceber que a hegemonização do crime pela aliança de grupos criminosos, muitos diretamente envolvidos com o aparato policial, como a CPI das Milícias provou, perpetua nossa eterna desgraça: a de acreditar que o mal são os outros.

Deixamos de fazer assim as velhas e relevantes perguntas: qual é a atual política de segurança do Rio de Janeiro que convive com milicianos, facções criminosas hegemônicas e área pacificadas que permanecem operando o crime? Quem são os nomes por trás de toda esta cortina de fumaça, que faturam alto com bilhões gerados pelo tráfico, roubo, outras formas de crime, controles milicianos de áreas, venda de votos e pacificações para as Olimpíadas? Quem está por trás da produção midiática, suportando as tropas da execução sumária de pobres em favelas distantes da Zona Sul? Até quando seremos tratados como estadunidenses suportando a tropa do bem na farsa de uma guerra, na qual já estamos há tanto tempo, que nos esquecemos que sua única finalidade é a hegemonia do mercado do crime no Rio de Janeiro?

Mas não se preocupem, quando restar o Iraque arrasado sempre surgirá o mercado financeiro, as empreiteiras e os grupos imobiliários a vender condomínios seguros nos Portos Maravilha da cidade.

Sempre sobrará a massa arrebanhada pela lógica da guerra ao terror, reduzida a baixos níveis de escolaridade e de renda que, somadas à classe média em desespero, elegerão seus algozes e o aplaudirão no desfile de 7 de setembro, quando o caveirão e o Bope passarem.

* José Cláudio Souza Alves e sociólogo, Pró-reitor de Extensão da UFRRJ e autor do livro: Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense.

Coluna do Leitor

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Fonte:http://www.cartacapital.com.br/sociedade/violencia-no-rio-a-farsa-e-a-geopolitica-do-crime

sábado, 20 de novembro de 2010

A consciência negra

A consciência negra

O Brasil celebra, comemora, protesta e entra definitivamente na sua conscientização negroide

Alexandre Braga (16/11/2010)

O Brasil celebra, comemora, protesta e entra definitivamente na sua conscientização negroide. Esse fato venceu as teses morenistas, que pregavam que seríamos uma nação atrasada por causa da nossa herança africana ou porque uma possível ascendência negra iria nos envergonhar. Todo esse repertório falacioso perdeu força e caiu no desgosto da população, apesar de se passarem tantos anos de exclusão étnica. Hoje, a consciência negra, que virou uma agenda pública mensal, significa o reconhecimento dessa importante herança negra para o sucesso societário brasileiro. As ações afirmativas, dela oriundas, são a aplicação prática dos preceitos que estão na Constituição Federal, na ideologia e no ethos do nosso povo.

Mesmo que com um reconhecido atraso na disponibilização de ferramentas para superar as diferenças entre brancos e negros ( incluindo os próprios “morenos”, os pretos e os pardos), o Brasil está na rota certa para avançar na construção da democracia racial, que pode tornar-se realmente um fato. Somente na educação há em torno de 90 das melhores universidades que usam os mecanismos especiais de inclusão educativa para beneficiar os estudantes de camadas pobres, aplicando também o recorte étnico-racial. Na saúde, cultura, empregabilidade, também há ações voltadas para a inclusão de negros e seus descendentes.

Na literatura, teremos muito trabalho para revisar os livros didáticos usados por nossos pupilos nas escolas, como recomenda a Lei nº 11.645 – sobre o ensino da cultura afroindígena nos colégios brasileiros. Por exemplo, somente o IBGE calcula que precisaremos de pelo menos 20 anos de políticas voltadas para as ações afirmativas para colocar brancos e negros em níveis mínimos de igualdade. Portanto, a lembrança de datas como essas, do mês da consciência negra, têm um viés político muito forte: a resistência venceu a escravidão.

Por isso, suas atividades vêm carregadas de tempero emocional. Dessa forma, o Dia da Consciência Negra traz consigo tantas e variadas atividades, como as marchas para aumentar a consciência do pertencimento étnico, os protestos mais raivosos e justos, e as homenagens aos homens e mulheres negros ( Zumbi e Dandara, líderes da República de Palmares; Osvaldão, líder da Guerrilha do Araguaia; Machado de Assis, escritor; André Rebouças, engenheiro especialista em engenharia hidráulica-ferroviária e de portos; Chiquinha Gonzaga, compositora, pianista e primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil, João Cândido, líder da Revolta da Chibata; entre outros), que, de alguma forma, ajudaram na construção da riqueza da nação mais negra fora do continente africano.

E o maior significado desse dia é que, longe do ranço contra quem quer que seja, hoje a população negra, ou os 49,8% do povo brasileiro, luta pelo cumprimento do plano de ação assumido na Conferência da ONU contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata ,em 2001, e pelas propostas da Conferência Nacional de Promoção de Igualdade Racial, organizada em 2005 pelo governo brasileiro.

Além disso, o Movimento Negro quer justiça social aos próprios negros, aos povos de tradição indígena e aos demais grupos que durante a construção dessa nação-continente tiveram seus direitos humanos violados. Ou seja, no século XXI o debate sobre as alternativas para o desenvolvimento sustentável, as soluções para superação dos conflitos étnicos e o combate ao preconceito e às desigualdades sócio-raciais se dão entrelaçadas pelo culto à capacidade de resistência dos povos e pelo clamor por equidade. É inegável a herança africana na culinária, na dança, no ethos do nosso povo, mas é inegável também o atraso com que o Estado brasileiro trata essas questões. Às vezes, quando as assumem, o faz lentamente e de forma mais para negro ver do que para negro ter justiça e respeito de fato.

Alexandre Braga é Coordenador de Comunicação da UNEGRO-União de Negros Pela Igualdade, Tesoureiro do FOMENE – Fórum Mineiro de Entidades Negras, africanista e articulista de jornais no Brasil e África. Seu e-mail é bragafilosofia@yahoo.com.br



sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Antropóloga pede criminalização de sites discriminatórios


O Senado realizou, na manhã desta sexta-feira (19 de novembro), sessão especial na comemoração do Dia da Consciência Negra (20 de novembro), dedicada a expressar a solidariedade dos senadores a todas as pessoas que ainda são vítimas de discriminação e preconceito na sociedade brasileira, incluindo negros, minorias e grupos religiosos.

Importante a discussão que se apresentou nesta sessão especial, no que se refere a "livre expressão" na internet, que vem reproduzindo, cada vez mais, infelizmente, preconceitos e discriminações sobre diferentes grupos, que fogem aos padrões de normalidade impostos pela nossa sociedade branca, machista e patriarcal. Longe de defendermos a censura, precisamos pensar meios de controle social que sejam possivéis reprimir a manutenção destas práticas no espaço virtual e que se deslocam para a vida "real". 

Os jovens, cada mais jovens, que estão acessando, cada vez mais cedo a internet, estão entrando em contato com estas informações, sem se questionarem, o conteúdo e os impactos sociais destas "verdades" construídas historicamente e que continuam, infelizmente, a serem difundidas.    

 
PLENÁRIO DO SENADO FEDERAL / Homenagem
19/11/2010 - 14h06

Antropóloga pede criminalização de sites discriminatórios

A antropóloga Adriana Dias revelou preocupação com o acesso de mais de 100 mil internautas brasileiros - a maioria, jovens - a sites que veiculam material discriminatório contra negros, judeus, homossexuais, migrantes e uniões interraciais. Após fazer essa denúncia na sessão especial do Senado pelo Dia Nacional da Consciência Negra, nesta sexta-feira (19), a pesquisadora pediu o apoio do Parlamento para criminalizar a divulgação desse tipo de mensagem pela internet.

- Em minha pesquisa de mestrado, que defendi em 2007, localizei 13 mil sites neonazistas em língua portuguesa, inglesa e espanhola. Hoje, infelizmente, dada a impunidade, eles alcançam a marca de 20 mil sites. São dezenas de comunidades em blogs e redes sociais e centenas de perfis no Twitter - comentou.

Integrante da comunidade judaica, Adriana Dias denunciou ainda ser possível encontrar, em sites brasileiros de teor neonazista, livros infantis para colorir defendendo a versão da supremacia racial dos brancos. No ano em que são celebrados os 100 anos da Revolta da Chibata, os 315 anos da morte do líder negro Zumbi dos Palmares e os 70 anos da abertura do campo de concentração de Auschwitz, onde 1,5 milhão de judeus foram mortos, a antropóloga reivindica a investigação e punição dos crimes por discriminação e preconceito.

-É preciso coibir definitivamente toda e qualquer manifestação de racismo, de preconceito e de intolerância. O atual estado de ódio, de incompreensão, o gigante retorno do anti-semitismo, do racismo, da homofobia, da intolerância com a pessoa com deficiência, nos convence da gravidade do momento presente, enquanto toma o coração e a mente dos nossos jovens - apelou.

Da Redação / Agência Senado
(Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)
Fonte: http://www.senado.gov.br/noticias/verNoticia.aspxcodNoticia=105495&codAplicativo=2

 

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Sobre litertura infantil e a questão racial

Este texto que segue possibilita diferentes interpretações e análises, abordando um tema que precisa sempre estar em discussão: a questão do preconceito e do racismo. Estas práticas estão presentes em nosso cotidiano, muitas vezes, de formas tão naturalizadas, que nem as percebemos mais.

"Mas é só uma piada!", alguns argumentam. Uma piada que continua a reproduzir o preconceito e o racismo construido ao longo de alguma centena de anos.

Sobre literatura infantil e a questão racial

Por: Keila Grinberg

Saiu outro dia no jornal norte-americano The Washington Post: pai de uma estudante negra do 5º ano da região de Detroit, nos Estados Unidos, está processando a escola onde a menina estuda por considerar que ela foi racialmente assediada.

Motivo: o professor teria lido em voz alta trechos de um livro infantil sobre escravidão, durante uma aula em que os alunos preparavam-se para celebrar o Black History Month (mês da celebração da história e cultura negra, comemorado tradicionalmente em fevereiro naquele país).

Os pais reclamam que a leitura, recheada com termos supostamente considerados racistas, teria prejudicado o aprendizado da filha
Segundo o advogado da escola, os alunos estavam envolvidos em uma discussão positiva sobre o livro. Mas, no processo, os pais reclamam que a leitura, recheada com termos supostamente considerados racistas, teria prejudicado o aprendizado da filha, afetada em seu bem-estar mental e emocional.

O livro em questão, From Slave Ship to Freedom Road (Do navio negreiro à estrada da liberdade, em tradução livre), foi escrito pelo celebrado autor negro Julius Lester, autor do best-seller infantil To be a slave (Ser um escravo, em tradução livre) e professor de estudos afro-americanos da Universidade de Massachusetts.

Trata-se de uma narrativa sobre a escravidão do ponto de vista de um escravo. A obra é baseada em uma série de pinturas sobre o tema feitas por Rod Brown, artista cujo trabalho já foi exposto no Schomburg Center for Research in Black Culture, de Nova Iorque, e no Frederick Douglass Museum, de Washington DC.

A princípio, por suas biografias, jamais os dois seriam suspeitos de propagar conteúdo racista em suas obras. No entanto, é isso o que o processo pretende provar.

Caso brasileiro

Isso aconteceu na mesma semana em que jornais de todo o Brasil noticiaram o parecer do Conselho Nacional de Educação no qual o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, um dos maiores clássicos da literatura infantil do Brasil, foi considerado inadequado para uso em sala de aula, por ter conteúdo racista.

A primeira edição de Caçadas de Pedrinho é de 1933. Monteiro Lobato costumava dizer que “um país se faz com homens e livros”, não era negro nem professor, mas criou o Sítio do Picapau Amarelo.

A semelhança entre os dois casos não pode ser mera coincidência. Tanto aqui quanto nos Estados Unidos, a discussão sobre como falar de “raça” e racismo nas escolas está na ordem do dia. E provoca reações apaixonadas. O próprio ministro da Educação se manifestou contra o veto a Caçadas de Pedrinho e favorável a uma explicação, em nota, sobre o conteúdo racista de passagens do livro.

Marisa Lajolo, professora titular da Universidade Estadual de Campinas e especialista em Monteiro Lobato, acha que nem nota explicativa o livro deve ter: “O que a nota exigida deve explicar? O que significa esclarecer o leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura? A quem deve a editora encomendar a nota explicativa? Qual seria o conteúdo da nota solicitada? A nota deve fazer uma autocrítica (autoral, editorial?), assumindo que o livro contém estereótipos? A nota deve informar ao leitor que Caçadas de Pedrinho é um livro racista? Quem decidirá se a nota explicativa cumpre efetivamente o esclarecimento exigido pelo MEC?”

Repúdio inicial

Minha primeira sensação, ao tomar conhecimento dos dois casos, também é de repúdio. Os dois episódios parecem ser excessos de um tempo em que tudo parece poder ser rotulado como racismo.

Compartilho do desconforto de muitos com o uso indiscriminado da palavra “raça”, como, aliás, tão bem definiu Monica Grin em seu livro “Raça”: debate público no Brasil (Rio de Janeiro, Mauad/Faperj, 2010), também lançado na semana passada. Ela advoga o uso do termo entre aspas, para não correr o risco de ser confundido com o uso naturalizado daqueles que acreditam que, de fato, existem entre nós, humanos, mais de uma raça. Nunca se sabe.

Leio os livros de Monteiro Lobato para minhas filhas, e não acho que isso fará delas pessoas racistas

Mas em um debate onde tantos têm tantas certezas, eu continuo cheia de dúvidas.
É indiscutível que Monteiro Lobato é o autor maior da literatura infantil brasileira. Sou, como todo mundo, apaixonada por seus livros. Leio-os para minhas filhas, e não acho que isso fará delas pessoas racistas. Não acho que eles devam ser banidos das escolas, e não saberia responder a nenhuma das perguntas elencadas por Marisa Lajolo sobre as tais notas explicativas.

Mas, ao mesmo tempo, não posso deixar de compreender quem se incomoda em ouvir, em sala de aula, termos como “negra beiçuda”, como várias vezes foi chamada a Tia Nastácia. Atribuir o incômodo apenas a um excesso de sensibilidade de quem reclama talvez seja falta de sensibilidade de quem vê, nesse fenômeno, apenas o lado do autor e do texto.

Tem o leitor também. Ou melhor, os leitores. Que leem o texto de Lobato de infinitas maneiras, inclusive aquela em que não se gosta dos estereótipos. Desqualificar pura e simplesmente essa chave de leitura, acusando-a de simplista, é o mesmo que desqualificar esse leitor.

Manifestação das cores

Diferentemente do que acontecia há várias décadas, hoje temos alunos de todas as cores nas salas de aula do país

O que esses casos da semana passada a mim sugerem – mesmo com seus excessos e exageros – é que, diferentemente do que acontecia há várias décadas, hoje temos alunos de todas as cores nas salas de aula do país. E – novidade também – são alunos que reclamam, e alto, quando se sentem incomodados.

Há quem veja nisso a expressão da racializaçāo da sociedade brasileira, como teria acontecido com a sociedade norte-americana. Há outros que advogam ser esse processo parte do amadurecimento do exercício da cidadania no Brasil.

Talvez até seja um pouco das duas coisas. Mais da segunda do que da primeira, espero. Seja como for, o que não dá mais para fazer, hoje em dia, é tampar o ouvido e fingir que não ouviu.

Keila Grinberg
Departamento de História - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A História da Austeridade por Boaventura de Sousa Santos

A História da Austeridade por Boaventura de Sousa Santos

A recente reunião do G-20 em Seul foi um fracasso total. Chegou a ser constrangedora a perda de credibilidade dos EUA, como suposta economia mais poderosa do mundo, e o modo como tentaram acusar a China de comportamentos monetários afinal tão protecionistas quanto os dos EUA. A reunião mostrou que a “ordem” econômico-financeira, criada no final da Segunda Guerra Mundial e já fortemente abalada depois da década de 1970, está a colapsar, sendo de prever a emergência de conflitos comerciais e monetários graves. Mas curiosamente estas divergências não têm eco na opinião pública mundial e, pelo contrário, um pouco por toda a parte os cidadãos vão sendo bombardeados pelas mesmas ideias de crise, de tempo de austeridade, de sacrificos repartidos. Há que analisar o que se esconde por detrás deste unanimismo.

Quem tomar por realidade o que lhe é servido como tal pelos discursos das agências financeiras internacionais e da grande maioria dos Governos nacionais nas diferentes regiões do mundo tenderá a ter sobre a crise econômica e financeira e sobre o modo como ela se repercute na sua vida as seguintes ideias: todos somos culpados da crise porque todos, cidadãos, empresas e Estado, vivemos acima das nossas posses e endividamo-nos em excesso; as dívidas têm de ser pagas e o Estado deve dar o exemplo; como subir os impostos agravaria a crise, a única solução será cortar as despesas do Estado reduzindo os serviços públicos, despedindo funcionários, reduzindo os seus salários e eliminando prestações sociais; estamos num periodo de austeridade que chega a todos e para a enfrentar temos que aguentar o sabor amargo de uma festa em que nos arruinamos e agora acabou; as diferenças ideológicas já não contam, o que conta é o imperativo de salvação nacional, e os políticos e as políticas têm de se juntar num largo consenso, bem no centro do espectro político.

Esta “realidade” é tão evidente que constitui um novo senso comum. E, no entanto, ela só é real na medida em que encobre bem outra realidade de que o cidadão comum tem, quando muito, uma ideia difusa e que reprime para não ser chamado ignorante, pouco patriótico ou mesmo louco. Essa outra realidade diz-nos o seguinte. A crise foi provocada por um sistema financeiro empolado, desregulado, chocantemente lucrativo e tão poderoso que, no momento em que explodiu e provocou um imenso buraco financeiro na economia mundial, conseguiu convencer os Estados (e, portanto, os cidadãos) a salvá-lo da bancarrota e a encher-lhe os cofres sem lhes pedir contas. Com isto, os Estados, já endividados, endividaram-se mais, tiveram de recorrer ao sistema financeiro que tinham acabado de resgatar e este, porque as regras de jogo não foram entretanto alteradas, decidiu que só emprestaria dinheiro nas condições que lhe garantissem lucros fabulosos até à próxima explosão. A preocupação com as dívidas é importante mas, se todos devem (famílias, empresas e Estado) e ninguém pode gastar, quem vai produzir, criar emprego e devolver a esperança às famílias?

Neste cenário, o futuro inevitável é a recessão, o aumento do desemprego e a miséria de quase todos. A história dos anos de 1930 diz-nos que a única solução é o Estado investir, criar emprego, tributar os super-ricos, regular o sistema financeiro. E quem fala de Estado, fala de conjuntos de Estados, como a União Europeia e o Mercosul. Só assim a austeridade será para todos e não apenas para as classes trabalhadoras e médias que mais dependem dos serviços do Estado.

Porque é que esta solução não parece hoje possível? Por uma decisão política dos que controlam o sistema financeiro e, indiretamente, os Estados. Consiste em enfraquecer ainda mais o Estado, liquidar o Estado de bem-estar onde ele ainda existe, debilitar o movimento operário ao ponto de os trabalhadores terem de aceitar trabalho nas condições e com a remuneração unilateralmente impostas pelos patrões. Como o Estado tende a ser um empregador menos autônomo e como as prestações sociais (saúde, educação, pensões, previdencia social) são feitas através de serviços públicos, o ataque deve ser centrado na função pública e nos que mais dependem dos serviços públicos. Para os que neste momento controlam o sistema financeiro é prioritário que os trabalhadores deixem de exigir uma parcela decente do rendimento nacional, e para isso é necessário eliminar todos os direitos que conquistaram depois da Segunda Guerra Mundial. O objetivo é voltar à política de classe pura e dura, ou seja, ao século XIX.

A política de classe conduz inevitávelmente à confrontação social e à violência. Como mostram bem a recentes eleições nos EUA, a crise econômica, em vez de impelir as divergências ideológicas a dissolverem-se no centro político, agrava-as e empurra-as para os extremos. Os políticos centristas (em que se incluem os políticos que se inspiraram na social democracia europeia) seriam prudentes se pensassem que na vigência do modelo que agora domina não há lugar para eles. Ao abraçarem o modelo estão a cometer suicídio. Temos de nos preparar para uma profunda reconstituição das forças políticas, para a reinvenção da mobilização social da resistência e da proposição de alternativas e, em última instância, para a reforma política e para a refundação democrática do Estado.

(*) Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17188

Ciganos: anatomia de um povo desprezado

Anatomia de um povo desprezado



Na Europa cristã, os ciganos foram estigmatizados por lendas, como a de serem descendentes de Caim, entre outras. Foto: Olga Vlahou

Atuais restrições aos ciganos na Europa Ocidental são consequência do preconceito antigo contra uma população associada ao nomadismo

 

Por Helion Póvoa Neto, Professor da UFRJ e Coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios (NIEM)

Os ciganos por vezes aparecem como povo “à parte”, não pertencente a nações territoriais, com vida nômade ou seminômade, provocando estranheza numa sociedade com valores associados à sedentarização, como a Europa.

Junto disso, é bom lembrar que, na sociedade moderna, pessoas partem em busca de novos lugares para viver e se estabilizar, por causas econômicas, políticas e religiosas. São as migrações.
 

Ao mesmo tempo, há movimentos associados à “errância”, ao nomadismo ou à incapacidade de estabelecer relações duradouras com os lugares e as formas de trabalho mais tradicionais, que são fortemente estigmatizados, levando a iniciativas de assimilação ou sedentarização forçada. Os povos ciganos já foram alvo de tais processos, embora muitos mantenham seu estilo de vida característico. Costumam atuar em ofícios ligados à arte e às atividades mágicas, com uma existência tida como “aventureira”, suscitando atitudes ambíguas da parte dos que vivem em sociedades não nômades.
Tem sido este o tom do relacionamento das sociedades ocidentais com os ciganos ao longo da história, desde que apareceram no continente europeu, causando, ao mesmo tempo, curiosidade e medo. Não havia registros escritos sobre sua origem e história. Paralelamente, praticavam uma cultura de transmissão oral, em uma língua incompreensível e cheia de segredos para os ocidentais.

O nome com que passaram a ser conhecidos já revela esse aspecto. Identificando-se como refugiados do Egito muçulmano, favoreciam a associação entre “egípcios” (égiptiens, egyptians, egitanos) e os nomes gitans, tsiganes em francês, gypsies em inglês, gitanos em espanhol, ou ciganos em português. Muitos ciganos consideram tais nomes pejorativos e, mesmo sem consenso, preferem a designação de povos romani, rom ou roma.

A chegada à Europa

Sendo o continente europeu fundamentalmente cristão, especulações sobre a origem dos ciganos apoiaram-se em escritos bíblicos. Já foram qualificados como amaldiçoados, condenados a vagar pelo mundo por descenderem de Caim, por terem negado abrigo a José e Maria na volta do Egito ou por haverem forjado os pregos usados para a crucificação de Jesus Cristo.

Vale notar a semelhança com lendas referentes a outro grupo, os judeus, também associados à errância, a uma “culpa original” e ao exercício de ofícios diferentes daqueles dos cristãos. Séculos mais tarde, tidos como “sem pátria”, os dois grupos seriam vítimas do Holocausto na Alemanha nazista.

As conclusões já aceitas sobre os ciganos baseiam-se em registros escritos e nas línguas e dialetos romani, que foram assimilando características das regiões pelas quais passavam.
A explicação mais aceita aponta para a península indiana como área de origem, com a saída ocorrendo na Antiguidade. Textos e imagens de época registram a chegada e passagem de músicos e outros trabalhadores indianos à Pérsia (atual Irã) entre os séculos III e V de nossa era. Outros registros históricos documentam um movimento progressivo, rumo ao Ocidente, de grupos nômades com origem indiana.

No século XIV, a presença dos ciganos começou a se fazer notar na maior parte da Península Balcânica, onde hoje estão Croá-cia, Sérvia, Bulgária e Romênia. Nessas regiões registram-se também os primeiros sinais de escravização de ciganos, um fenômeno que ocorreria até o século XIX em boa parte do Leste Europeu.

Estigma e Violência

As guerras e as crises agrárias na Europa, entre o fim da Idade Média, haviam deixado senhores de terras sem trabalhadores, o que acarretou uma legislação contra a vagabundagem e a errância, visando compelir as pessoas ao trabalho. Os ciganos, com pele mais escura, sem vínculos a nenhuma nação reconhecida e parecendo “naturalmente” nômades, foram as maiores vítimas. Eram alvos também para a Igreja Católica, preocupada com formas de magia (a leitura de mãos e a previsão do futuro).

Assim, ao mesmo tempo que os ciganos chegavam à Europa Ocidental, por volta do século XV, as atitudes discriminatórias se acentuavam. Mesmo onde não havia escravidão, ser reconhecido como cigano ou judeu equivalia a ser criminoso e ao trabalho nas galés (prisões). Nobres, reis e papas buscavam submeter os nômades vistos como irredutíveis ou indesejáveis. O papa Pio V incitou os governos de Portugal, Espanha e França a expulsar ciganos das áreas católicas para África e América. Em alguns casos, os próprios ciganos tomaram a iniciativa de emigrar para o Novo Mundo, seguindo os judeus que se cristianizavam e fugiam das perseguições na Europa.

No século XVIII, permaneceram tentativas de sedentarização forçada e erradicação das línguas romani. Muitos, porém, permaneceram nômades: viviam de transporte e a venda de animais, comércio em mercados temporários, trabalho como músicos e artistas de circo, leitura de mãos e adivinhação da sorte nas cidades.

Em alguns países, tiveram uma relativa estabilidade e integração às sociedades locais, como na Espanha, onde a cultura flamenca é praticada por ciganos e reconhecida como um símbolo de identidade nacional.

No Leste Europeu, onde ciganos representam porcentagem significativa da população em países como a Romênia e a Bulgária, permanece predominantemente o grupo rom, ou roma, que pratica a língua romani e apresenta diversos subgrupos.
A partir do século XIX, as atitudes quanto aos ciganos estabilizaram-se, na Europa, persistindo a discriminação, mas com um crescente interesse em sua linguagem, música e cultura. As leis anticiganos tendiam a ser abolidas, juntamente com a servidão e a escravidão no Leste. O espírito romântico nas artes voltou-se muitas vezes para os ciganos.

Da sedentarização ao extermínio

A relação entre ciganos e povos europeus voltou a ser violenta com o governo nazista da Alemanha. Manifestações de intolerância surgiram na década de 1920, quando leis pronunciavam ciganos e judeus como “raças estrangeiras” de sangue “impuro” e ameaçadoras ao projeto de pureza racial alemã.

Classificados como criminosos, alheios à “sociedade normal”, foram deportados à Polônia, aprisionados em campos de concentração e submetidos, de 1943 a 1945, à chamada “solução final”, com o extermínio de 200 mil a 800 mil ciganos.

No pós-Segunda Guerra Mundial, os ciganos do Leste Europeu, habitantes dos países do bloco socialista, estiveram sujeitos a projetos de assimilação e sedentarização- forçada. O nomadismo sofreu interdições, e a escolarização tornou-se obrigatória, com negação do estatuto de minoria étnica e linguística. A sedentarização foi atingida, mas em geral a assimilação fracassou: ressentimentos e preconceitos entre ciganos e não ciganos existem até hoje.

A abertura da União Europeia
Durante a Guerra Fria, ciganos do Leste Europeu eram proibidos de viajar. Porém, na década de 1960, ocorreu uma vinda de ciganos, principalmente da antiga Iugoslávia, para países ocidentais.

A grande mudança nos fluxos aconteceu a partir de 1989, com a queda dos regimes socialistas e a migração, em massa, de grupos acalentados pelo sonho do “Ocidente próspero” e receptivo à imigração. Juntando-se a outros não ciganos do Leste, milhares de roma deslocaram-se legal ou ilegalmente.
A partir de 2004, ingressaram na União Europeia países com considerável população cigana, como Hungria, Eslováquia, República Tcheca. Em 2007, aderiram também Bulgária e Romênia.

O problema dos ciganos confunde-se com a rejeição aos imigrantes em geral, e também com o tema político, extremamente sensível, o da expansão da UE rumo ao Leste. Outros países com consideráveis contingentes de ciganos são também candidatos ao ingresso, como Sérvia e Turquia.

A União Europeia foi pensada como um espaço comum de circulação, com eliminação do controle de fronteiras para os países participantes. Todavia, os habitantes dos últimos países a entrarem na UE não são ainda membros plenos, o que têm repercussões para a situação dos imigrantes do Leste nos países europeus ocidentais.

As iniciativas recentes de deportação de ciganos romenos e búlgaros pela França, com ameaças em outros países, podem ser entendidas nesse contexto. A situação de “sem domicílio fixo” de boa parte dos ciganos e a alegação de constituírem risco para a ordem pública também aparecem como justificativas. A criminalidade é frequentemente alegada como razão para o estigma da comunidade. Porém, a situação de rejeição parece ser também uma causa para a restrição das opções de trabalho e sobrevivência para os ciganos.

A história mostra que responsabilizar todo um povo, cultura ou etnia, por problemas sociais mais amplos, pode ter consequências graves. Notícias recentes quanto a um “cadastro étnico” que a polícia francesa teria elaborado para os ciganos evocam perigosamente iniciativas semelhantes já mencionadas, e causam temores quanto ao que podem prenunciar.
A situação dos ciganos alerta a todos nós para os riscos da busca dos “culpados mais fáceis”, numa Europa que valoriza a diversidade cultural e tem como um de seus princípios a livre circulação.

Os Ciganos no Brasil
No século XVI, os primeiros ciganos desembarcaram na Colônia, provavelmente ibéricos degredados. Há registros também da presença de ciganos na região das Minas Gerais no século XVIII, em geral acusados de “desordeiros”. No Rio de Janeiro, alguns ciganos enriqueceram com o comércio de escravos.

No século XIX, outros grupos começam a chegar, em meio à política de abertura à imigração europeia. Tidos como indesejáveis pelos oficiais de imigração na maioria dos países, ocultavam sua condição tanto às autoridades dos locais de partida quanto às dos países de chegada. Assim, mesmo sem identificação precisa, nos séculos XIX e XX, o Brasil recebeu ciganos em meio aos fluxos de imigração alemã, italiana e do Leste Europeu.
Essa falta de identificação no processo migratório explica a imprecisão das estimativas atuais quanto ao número de ciganos e descendentes em território brasileiro. Com exceção de alguns grupos no interior do País, atuando como artistas de circo, comerciantes e ferreiros, a comunidade cigana é bem pouco visível na sociedade brasileira.

A recente valorização da identidade cigana, em novelas de tevê, em grupos de música e dança, estimulou alguns a se assumirem ou redescobrir suas “raízes ciganas”, embora o preconceito e as associações negativas ainda persistam. Um exemplo de origem cigana pouco conhecida é o de Juscelino Kubitschek de Oliveira, presidente da República (1956-1961), neto de um imigrante do império austro-húngaro que chegou a Diamantina (MG) em meados do século XIX.

Fonte: http://www.cartacapital.com.br/carta-na-escola/anatomia-de-um-povo-desprezado