Estupros e suicídios: uma das realidades nas Forças Armadas dos EUA
A realidade sempre tem muitas faces. São realidades e nem sempre conseguimos ver essas realidades por uma série de motivos. O texto abaixo descreve uma realidade, que com certeza, deve ser desconhecida pela maioria das pessoas. Independente das tendências e ideologias, temos jovens que passam por estes processos de disciplinarização nas instituições e acabam se omitindo ou temendo a reação de seus superiores. Uma realidade de tantas existentes. Como viver com a humilhação e a vergonha? Para muitos (muitas) o melhor caminho é o suicídio.
O Inimigo interior
Por Francisco Quinteiro Pires - Carta Capital 20/08/2012
Estupros e suicídios. Os adversários mais ameaçadores das Forças Armadas norte-americanas são internos. Nos dois últimos anos, ao menos 21 mil soldados sofreram violência sexual. Atualmente, um militar da ativa se mata a cada 24 horas. E um veterano, segundo o Department of Veterans Affairs, tira a própria vida a cada 80 minutos. Do início da Guerra do Afeganistão, em 2001, até 10 de junho deste ano, mais combatentes se suicidaram (2.676) do que morreram em atividades bélicas (1.950) no país asiático.
Apesar de os números alertarem para a gravidade da situação, as Forças Armadas estão perdendo a batalha contra essas duas ameaças. Segundo uma reportagem da revistaTime, citada no plenário do Congresso dos Estados Unidos, os militares “não conseguem vencer o seu inimigo mais insidioso”. “Esse problema talvez seja o desafio mais frustrante com o qual me deparei desde que fui nomeado secretário de Defesa”, admitiu Leon Panetta, em entrevista recente. A mesma dificuldade é vista no combate aos estupros de soldados, sendo do sexo feminino a maioria das vítimas. O belicismo, o espírito de corpo, o respeito cego à hierarquia e o medo de ameaça à promoção na carreira inibem o pedido de ajuda. Mesmo aqueles que procuram auxílio são ignorados pelos superiores.
“Instituições poderosas preferem acobertar crimes a admiti-los”, diz o documentarista Kirby Dick a CartaCapital. “Podemos confirmar esse tipo de reação com o atual esforço da Igreja Católica para esconder os casos de abuso sexual cometidos por clérigos.” Dick é o diretor deThe Invisible War (A Guerra Invisível, em tradução livre), filme muito comentado durante o Human Rights Watch Film Festival, realizado em Nova York há cerca de um mês, e ganhador do prêmio de melhor documentário segundo a audiência no Sundance Film Festival. O longa-metragem, cuja exibição no Brasil a HBO Latin America ainda negocia, mas que estará disponível em DVD nos Estados Unidos a partir de 23 de outubro, apresenta entrevistas com 12 militares mulheres decididas a falar sobre a violência sexual contra elas.
O filme mostra que as combatentes em zonas de guerra correm um risco maior de ser estupradas por um colega do que de morrer sob fogo inimigo. A frequência desse tipo de violência entre os militares é o dobro na comparação com a da sociedade civil. Mas apenas 8% dos casos são levados a julgamento. Desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), mais de 500 mil militares foram estuprados. “Instituição mais poderosa dos Estados Unidos, as Forças Armadas transformaram em política não oficial a negação das acusações, o descrédito das vítimas, a classificação dos críticos como antipatrióticos e a ameaça implícita de cancelamento de contratos com entidades privadas que sabem dos delitos.”
Existem duas fortes razões para que esse crime sexual tenha sido ignorado por décadas, segundo Dick. “Quem está servindo não tem permissão de falar com jornalistas sem o consentimento dos superiores. De acordo com uma decisão tomada pela Suprema Corte em 1955, ninguém pode processar as Forças Armadas por crimes cometidos enquanto estiver em serviço.” Para o documentarista, se as vítimas de estupro pudessem ir à Justiça, muitos crimes seriam evitados ou, ao menos, revelados, pois atualmente “a chance de o público saber é muito pequena”.
Após a exibição de The Invisible War em Sundance, no início deste ano, Leon Panetta anunciou a criação de uma unidade de atendimento especial às vítimas de estupro em cada ramo das Forças Armadas. O documentário segue a linha de outros trabalhos de Kirby, cineasta sem receio de tomar partido quando ataca a hipocrisia e os desmandos de poderosos e instituições. Em Outrage (2009), indicado a um Emmy, ele tratou de políticos republicanos que são homossexuais enrustidos, mas votam contra leis como a do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ao confrontar os abusos sexuais do clero católico em Twist of Faith (2004), indicado ao Oscar de melhor documentário, o diretor acompanhou os efeitos da decisão de Tony Comes de tornar público um trauma pessoal. Comes decidiu fazer isso após descobrir ser vizinho do padre que o estuprou 20 anos antes, quando era adolescente.
Kirby teve a ideia de dirigir The Invisible War após ler The Private War of Women Soldiers (A Guerra Privada das Mulheres Militares), uma reportagem de Helen Benedict publicada pelo website noticioso Salon em 2007 e transformada em livro dois anos depois. Durante a produção do filme, Kirby e a sua equipe descobriram em primeira mão o acobertamento contínuo de numerosos casos de assédio e violência sexuais em Marine Barracks, em Washington, D.C., posto mais antigo dos fuzileiros navais norte-americanos onde fica o alto comando dessa força de elite.
O documentarista conta ter enfrentado vários obstáculos para produzir The Invisible War. “Convencer vítimas de estupro a falar para a câmera a respeito da sua experiência foi um desafio significativo.” Ele teve a ajuda de psicólogos, advogados e jornalistas para localizar e entrevistar mais de cem mulheres. Conversou também com especialistas que atuaram para a Justiça Militar e comentaram “os procedimentos enviesados e ineficazes de investigação e julgamento”.
O diretor delegou a tarefa de entrevistar as vítimas para Amy Ziering, produtora do filme. “Decidimos que Amy conduziria as entrevistas, porque as mulheres se sentem mais confortáveis para relatar a violência sexual a outra mulher.” Segundo o documentarista, a reconstituição do trauma em palavras e diante de terceiros era uma forma de enfrentar o medo de represália pelo alto-comando, contrário à revelação dos crimes. “Relatar o estupro para quem tinha consciência da gravidade da situação foi reconfortante.” Kirby conta que o marido de uma das vítimas disse não compreender o estado emocional da companheira até assistir aThe Invisible War. “Ao perceber que a reação da sua esposa era similar à das outras vítimas, ele foi capaz de assimilar a experiência dela.”
A maioria das mulheres estupradas por colegas culpa a si mesma, pois acredita ser, de alguma maneira, responsável pelos ataques sexuais. Mesmo quando prejudicados, os militares são relutantes em se rebelar contra uma instituição que aprenderam a admirar, diz Dick. Em muitos casos, a carreira militar fora antes seguida por avós e pais. Além de sofrerem de estresse pós-traumático e agorafobia, as entrevistadas de The Invisible War confessaram ter considerado ou tentado o suicídio em várias ocasiões.
De acordo com estatísticas do Departamento de Defesa, 95% dos militares suicidas são homens, 83% tiraram a própria vida em território norte-americano e 47% têm menos de 25 anos. Ao menos um terço dos que se matam nunca lutou em uma guerra. Um dos casos mais recentes envolve o julgamento e a absolvição do sargento Adam H. Holcomb pela morte do soldado Danny Chen. Em 2011, enquanto servia no Afeganistão, Chen disparou um tipo na cabeça após sofrer maus-tratos de Holcomb e reclamar de perseguição dos seus companheiros.
Quando tratou da onda de suicídios nas Forças Armadas, a revista Time contou em detalhes as histórias de dois militares. Michael McCaddon, médico, sofria de depressão e se enforcou em uma sala do hospital onde trabalhava, no Havaí. Após realizar 70 missões no Iraque em nove meses, Ian Morrison, piloto de helicóptero, voltou aos Estados Unidos. Ele teve dificuldade para se adaptar à rotina. Matou-se com um tiro no pescoço. Os dois vinham desenvolvendo carreiras promissoras antes de se suicidarem, por coincidência, no mesmo dia: 21 de março deste ano.
Incentivados por suas esposas, tanto McCaddon quanto Morrison procuraram a ajuda dos superiores, apesar do medo de essa atitude comprometer possíveis promoções. Seus pedidos foram desprezados. O alto-comando atribuiu os distúrbios psicológicos dos dois militares a problemas familiares. Ambos estavam satisfeitos com as suas vidas profissionais, segundo a interpretação oficial. Essa negligência se reflete em cifrões. Por ano, o Pentágono destina apenas 2,1 bilhões de dólares (4% das suas verbas médicas) ao tratamento de doenças mentais. A situação pode piorar com o corte de 500 bilhões de dólares no orçamento da Defesa previsto para janeiro de 2013.
Os suicídios de McCaddon e Morrison desafiam as explicações fáceis. Ambos mostravam sentir vergonha de si mesmos, relatam as esposas. Diziam não estar à altura da sua vocação. Os dois padeceram às avessas da loucura de Travis Bickle. Protagonista de Taxi Driver (1976), filme de Martin Scorsese, Bickle (Robert De Niro) é um fuzileiro naval e veterano da Guerra do Vietnã. Após voltar do campo de batalha com honrarias, ele passa a viver em Nova York, onde trabalha à noite como taxista, pois não consegue dormir. Cada vez mais isolado, vê a sua saúde mental se deteriorar na cidade que considera um esgoto a céu aberto. Ele conhece Iris (Jodie Foster), prostituta de 12 anos, e decide matar os cafetões que exploram a adolescente. Promove uma carnificina e é tratado como herói pelos jornais. Bickle atribuía aos outros a origem dos seus problemas. Ele se considerava um anjo vingador. McCaddon, Morrison e milhares de outros militares norte-americanos pensavam o contrário e se puniram por isso.
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