Carmen Rengel (Periodismo Humano)
“Papai, não vou entrar no Exército. Não quero. Sabe o porquê”. Uma filha afirma, sincera, a seu pai. Eles se conhecem bem, se entendem, se adoram. Não há muito mais o que falar. Ele sabe que não vai convencê-la. Ela é firme e teimosa, como ele, e não dá o braço a torcer se tem uma ideia fixa na cabeça. Filha digna de seu pai. A cena poderia ser mais um conflito entre uma adolescente e seu pai, mas as circunstâncias a convertem em excepcional: a que se nega a vestir o uniforme é Omer Goldman, uma das jovens israelenses que rechaça o recrutamento como membro do movimento shministim (o nome que se outorga aos adolescentes do 12º grau, o último curso da educação secundária), e o ouvinte é um dos espiões mais brilhantes que já integrou o Mossad (serviço secreto do governo de Israel), o segundo nas sombras, conhecido como “N”. A história familiar evidencia o movimento interno que Israel e suas Forças Armadas estão sofrendo: não são um muro inacessível, não são pura ordem – sapatada e bater continência -, são um organismo vivo onde se gera debate, se examinam as consciências, se apresentam as contradições.
Os shministim são o último grande exemplo dessa ebulição vivida pelas Forças Armadas de Israel, são objetantes que se negam a passar das aulas às bases militares. O movimento foi criado em 2008 e, desde então, quase 200 adolescentes se recusaram a alistar-se. O processo é tão simples quanto arriscado: chega a convocatória para o recrutamento, recusa-se, espera-se a audiência em um tribunal militar onde novamente tem que se explicar esse “não” e cumpre-se a consequente pena de prisão, de 10 a 30 dias aproximadamente. Depois a convocação volta às filas e o processo se repete. A rebelião é tão nova que ainda se desconhece quantas vezes um destes jovens pode acabar na prisão. O habitual é que o Exército deixe de insistir quando chegam aos 21 anos e passa a idade para ser recrutado ou se apresentam algum atenuante médico ou religioso como desculpa. A incerteza sobre o que pode acontecer enquanto se revive esse círculo de recrutamento-rechaço-castigo leva os jovens a uma incerteza absoluta: não sabem quando os aprisionarão, por quanto tempo, em que condições – caso se neguem a vestir o uniforme durante sua condenação são submetidos a isolamento –, vivem com esse medo e com a impossibilidade de prosseguir em paz os estudos ou de encontrar emprego. Ninguém firma um contrato de trabalho com estes jovens, os quais são valentes aos olhos de seus pares e os quais a maior parte da sociedade israelense condena como traidores.
Omer, enérgica, se exalta perante a crítica. “Não sou covarde, não sou uma desertora, não me esquivo do compromisso com meu país, mas opto por este grande ato de responsabilidade civil que é denunciar que o Exército vai mais além da missão defensiva para a qual foi criado”. Porque essa é a base dos shministim: sua oposição ao serviço militar – três anos obrigatórios para rapazes e dois anos para moças – é fundamentada na crítica pelo “dano” a que submetem os palestinos de Gaza e Cisjordânia. Não querem ser “cúmplices” de uma “força de ocupação” que “submete” a população árabe nos controles (mais de 600), que contribui “com a extração ilegal de seus recursos naturais”, que defende os colonos que “roubam sua terra”, que “humilham” os palestinos com sua “tentativa de superioridade racial” e que, inclusive em suas próprias filas, discriminam a mulher e o imigrante. As citações são extraídas das cartas que, há dois anos, enviam ao primeiro ministro de Israel e ao ministro da Defesa para formalizar publicamente sua negativa de pegar em armas, uma campanha a que mais de 250 mil pessoas têm se somado na Internet.
Em um país em que 53% dos judeus pensam que deveria se promover a emigração dos árabes israelenses, ou seja, que querem que estes saiam do país, e quase metade, 46%, não querem viver perto dos árabes (dados do Instituto para a Democracia de Israel), a negativa destes jovens surge de uma inquietude humanista profunda, de uma curiosidade intensa a respeito do vizinho e, em muitos casos, de um choque violento com a realidade dos Territórios Ocupados, que muda tudo. É o que ocorreu com Omer. “Sem que soubessem em casa, fui a um povoado palestino perto de Ramala e me encontrei com membros de uma ONG. Quando os soldados me viram com eles não sabiam que eu era israelense, de modo que atiraram granadas e balas de borracha contra mim e os demais. Foi terror puro. Me dei conta da realidade opressiva daquele lugar. Se a conhece, só pode se opor ao que os meus compatriotas fazem ali”, relata. Um ano depois, quando chegou o momento, disse que não, que este não seria seu Exército. Poderia conseguir um atestado médico falso ou, com as influências de seu pai, ter se alistado para fazer cômodos trabalhos de escritório, longe do perigo. Mas não quis. Por princípios. “Algumas Forças Armadas são necessárias, claro, oxalá que não fossem em nenhum lugar do mundo, mas estas são desnecessariamente violentas com quem não pode se defender. E eu não vou cometer crimes de guerra”, conclui. Sua postura lhe custou 28 dias de prisão em duas fases. Se a jovem não voltou ainda para o cárcere foi porque a rápida perda de peso durante seu confinamento levou os médicos a desencorajar a sua prisão.
Sua companheira Or Ben-David, a que teve a condenação mais longa até o momento (81 dias em três períodos diferentes), tem se dedicado completamente em transmitir essa mensagem. “Nem todos os israelenses são iguais”, refere-se a cada duas ou três fases. Ela se define sionista, convencida da necessidade da existência do Estado de Israel, mas sem violentar a ninguém. A guerra de 1948, afirma, foi necessária para definir o país, mas o que se tem visto depois “são seis décadas de opressão aos palestinos”. E com isso ela não concorda. Mas que ninguém lhe diga que estão sujando o bom nome do Exército. “Não, é uma grande instituição, mas tem vícios, erros e deformidades. Eu quero mudá-las. Se estou passando este sofrimento, é porque quero transformar a sua realidade. Há companheiros que servem porque querem mudar o Exército em seu interior. Eu quero fazê-lo de fora, alertando sobre seus defeitos e dando a entender aos palestinos que há esperança, que também deste lado há pessoas que não lhes querem mal, mas bem”, argumenta. No dia seguinte, Or Ben-David irá novamente a Bil´in, na Cisjordânia, sua “segunda casa”, para “recolher argumentos” para falar com outros judeus. “Nossa luta de hoje pode significar uma vizinhança em paz amanhã”, disse antes de despedir-se, com uma intensa fé.
Raiva sem contensão é a que mostra Tamar Katz, a mais veemente destas jovens shministim (80% destes objetantes são mulheres). De família pacifista, ela cumpriu três condenações por sua negativa em cumprir o serviço militar, 51 dias no total. Com o jornal Yediot Aharonot nas mãos, ela explica: “Não estou disposta a ganhar um título porque tenho indiscriminadamente um palestino como alvo e com os nervos, o cansaço ou o medo tenha caído em minhas mãos. Não quero ser parte disto, nem intencionalmente, nem por ordens, nem por erro”. Agora Katz se dedica em dar palestras em associações de esquerda para contar sua postura: que não quer ser parte de um “exército tirano”, que não vai invadir “uma terra que não é sua”, que Israel “tiraniza aos civis sem motivo” com o “falso pretexto de sua segurança”. Esta mensagem chegou até os EUA, através de Mia Tamarim, graduada no Novo México, que se denomina seguidora de Ghandi e professa a não violência. “[A atuação do Exército israelense] É absolutamente oposta ao meu modo de vida”, sorri. Isto foi o que alegou perante o tribunal militar que acabou condenando-a (42 dias na prisão, em três sentenças).
Contudo, o pacifismo dos shministim não é reconhecido como um excludente para o serviço nas Forças de Defesa de Israel (IDF, por sua sigla em inglês). Um jovem pode livrar-se do serviço militar por questões médicas, se é judeu ortodoxo, no caso dos homens; se alega motivos religiosos avalizados por um rabino ou se está casada, no caso das mulheres. Também pode-se falar de objeção de consciência, a qual se apegam estes jovens, mas as IDF entendem que, nesse caso, os jovens não vão contra a guerra em geral, que seus princípios não vão contra todo o sistema defensivo, mas contra ações específicas das Forças Armadas de Israel e, por isso, entendem que se enquadram num “caso claro de desobediência civil”.
Estão em terra de ninguém e sem demasiados apoios, por isso Emelia Marcovich chama a si mesma e a seus companheiros de “os novos criadores de Israel”, o país em que toda a sociedade civil é uma unidade militar, onde o exército é o povo. De origem russa, Masrcovich foi a última a ver como seus argumentos de pacifismo não deram em nada. “Até o juiz me disse que chamaria um médico ou um psiquiatra, que me fariam um pedido, o que evitaria o infortúnio de ir para a prisão, e que simplesmente seria desonesto que eu mentisse para o médico”, disse. Ainda que tenha 19 anos, como o resto de seus colegas, Marcovich sabe basear-se na história para sustentar seu discurso. “Oxalá sejamos como os insubmissos do Vietnã. Graças a eles acabou o conflito, ainda que depois de muita dor e muitas balas. Seguramente nós conseguiremos que a sociedade veja a sujeira que fazemos do outro lado do muro ou o desumano bloqueio de Gaza”. Saltam-lhe as lágrimas quando recorda que alguns de seus vizinhos cospem contra ela e pintam frases de insulto na porta de sua casa, mas se recompõe ao pensar nas centenas de jovens que a abrigaram quando esteve na prisão por dez dias. “É algo muito simples, sabe? Não se pode ter moral e servir a ocupação. Eu tenho moral, me educaram assim”. Ya´ara Shafir, outra companheira, trata de se contagiar com essa força. Ela está esperando o tribunal ver o seu caso e treme. “Quero fazer-me de forte, mas... em casa tenho problemas, sou vista com maus olhos, e meus amigos não me entendem. Em troca, cada vez que leio mais e estou mais atenta à imprensa internacional, vejo que elegi o melhor caminho. Não sei o preço que deverei pagar”, assume. Ao seu lado, uma caixa com as camisetas que os shministim preparam para suas manifestações. Branco sobre preto, nelas se lê: “I have a dream” (eu tenho um sonho). O sonho de uma convivência em paz com os palestinos.
A lenta sangria das IDF
Por parte dos porta-vozes das IDF israelenses constata-se que o número de “insubmissos” deste tipo é ainda baixo, mas crescente desde 2005. Sempre existiram, pontualizam os militares, especialmente depois das guerras de 1967 e 1973, onde se iniciou uma concordância com a corrente antibelicista que atravessou todo o mundo ocidentalizado. Atualmente, as IDF têm 176.500 efetivos, afirma o Instituto para Estudos Estratégicos de Londres. Segundo dados de Israel, 22% dos homens rechaçam o serviço militar, um número que sobe para 36,5% quando se tratam das mulheres em idade para entrar para as tropas. Os motivos essenciais alegados são, por esta ordem, religião, saúde, antecedentes criminais e residência no exterior. No caso da religião, a permissão do governo é automática: só é necessário ter o aval de um rabino. No caso da mulher, precisamente, há duas semanas Israel trouxe à tona a identidade de pelo menos mil jovens que, apesar de terem se proclamado religiosas para não irem para o quartel, “atualizam seus perfis do Facebook em shabbat, publicam suas fotos em restaurantes não-kosher (que não seguem as leis alimentares judaicas) ou usam roupas indecentes”. Como o Exército necessita de mão-de-obra – sempre faltam soldados neste vespeiro –, chegam a contratar, inclusive, detetives para desmascarar estas mentiras e fazer com que as moças vistam o uniforme. O “interesse maior do Estado” o faz necessário, sustentam os militares. Aos jovens shministim somam-se cerca de 600 oficiais e soldados na reserva – os quais têm que cumprir 40 dias de serviço a cada ano até que cumpram 45 anos – que tem se negado a regressar ao Exército, como aponta a ONG Breaking the Silence.
Tradução: Michelle Amaral
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/5237