Buscando na história brasileira, temos muitos momentos de revolta e manifestações populares nas ruas, como vem ocorrendo nas grandes cidades brasileiras. Retomando a história do Brasil Império, encontramos relatos de manifestações contra o aumento do transporte público na antiga capital do país no período imperial, o Rio de Janeiro.
Guardadas as devidas proporções, encontramos novamente o desejo da população de ter seus direitos garantidos, frente ao Estado.
Vale a pena a leitura do texto a seguir, como forma de compreendermos que a população brasileira nem foi e é conivente ou pacífica frente aos poderes instituídos. Qualquer semelhança com os dias atuais não é mera coincidência!
A guerra do vintém
Exploradas por militantes republicanos, manifestações contra taxa sobre transporte urbano tumultuam capital do Império e deixam mortos e feridos pelas ruas
José Murilo de Carvalho - Revista Brasileira de História (2007)
No dia 28 de dezembro de 1879, a capital do Império viu algo inédito
desde 1863, quando o Brasil rompeu relações com a Inglaterra por conta
da Questão Christie: a multidão protestando na rua. A manifestação
aconteceu no campo de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, em frente ao
palácio imperial. Cerca de cinco mil pessoas, lideradas por um militante
republicano, o médico e jornalista Lopes Trovão, reuniram-se para
entregar a d. Pedro II uma petição solicitando a revogação de uma taxa
de 20 réis, um vintém, sobre o transporte urbano, ou seja, bondes
puxados a burro. O vintém era moeda de cobre, a de menor valor da época.
A polícia não permitiu que a multidão se aproximasse do palácio.
Enquanto os manifestantes se retiravam, o imperador mandou dizer que
receberia uma comissão para negociar.
Mas Lopes Trovão e outros militantes republicanos, buscando tirar o
máximo proveito político da ação da polícia, recusaram o encontro.
Divulgaram um manifesto dirigido ao soberano, convocando-o a ir ao
encontro do povo. A Gazeta da Noite de Lopes Trovão e panfletos
distribuídos pela cidade passaram a pregar o boicote da taxa e a incitar
a população a reagir com violência, arrancando os trilhos dos bondes.
Outra manifestação foi convocada para o dia 1º de janeiro, data da
entrada em vigor da taxa, agora no centro da cidade, no Largo do Paço,
hoje Praça 15 de Novembro.
Nesse dia, a taxa estava sendo paga até que, ao meio dia, a multidão se reuniu no local previsto. Percebendo talvez a enrascada em que se metera, Lopes Trovão não incitou a multidão à ação. A massa moveu-se, então, pelas ruas do centro aplaudindo as redações dos jornais de oposição e se dirigiu ao Largo de São Francisco, ponto final de várias linhas de bonde. Em frente ao prédio da Gazeta da Noite, o próprio Trovão fez um apelo aos manifestantes para que se dispersassem. Mas àquela altura ele já perdera o controle dos acontecimentos. A massa popular concentrou-se nos arredores da Rua Uruguaiana e do Largo de São Francisco. O delegado que comandava as tropas da polícia pediu reforços ao Exército, mas, antes que a ajuda chegasse, ordenou à polícia que dispersasse a multidão a cacetadas.
A um grito de “Fora o vintém!”, os manifestantes começaram a espancar
condutores, esfaquear mulas, virar bondes e arrancar trilhos ao longo
da rua Uruguaiana. Dois pelotões do Exército ocuparam o Largo de S.
Francisco, postando-se parte da tropa em frente à Escola Politécnica,
atual prédio do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. O
povo, que só detestava a polícia, aplaudiu a tropa. Mas alguns mais
exaltados passaram a arrancar paralelepípedos e atirá-los contra os
soldados. Por infelicidade, um deles atingiu justo o comandante da
tropa, tenente-coronel Antônio Enéias Gustavo Galvão, primo de Deodoro
da Fonseca, militar que uma década depois se tornaria o primeiro
presidente do Brasil. O oficial descontrolou-se e ordenou fogo contra a
multidão.
As estatísticas de mortos e feridos são imprecisas. Falou-se em 15 a
20 feridos e em três a dez mortos. Entre os últimos, estavam
estrangeiros e o flautista Loló, condutor da Cia. de São Cristóvão,
atingido por uma pedrada. A multidão dispersou-se e, salvo pequenos
distúrbios nos três dias seguintes, estava findo o motim do vintém. A
cobrança da taxa passou a ser quase aleatória. As próprias companhias de
bondes pediam ao governo que a revogasse. Desmoralizado, o ministério
caiu a 28 de março. O novo ministério revogou o desastrado tributo.
A capital do Império estava acostumada a distúrbios de rua. Vivera em
quase permanente agitação entre 1820 e 1840. Nessa última data, o povo
exigiu na rua a maioridade do imperador. A partir daí, no entanto,
refletindo a estabilização política do Segundo Reinado, reduzira-se
muito a agitação. A tranqüilidade das ruas só fora quebrada nos
protestos contra Christie, quando a multidão, liderada por Teófilo
Otoni, ameaçou comerciantes ingleses e aplaudiu a ação do imperador. O
que a trouxe de volta em 1879?
Em 1878, depois de 10 anos de domínio conservador, subira ao poder o
gabinete liberal de Sinimbu, encarregado de fazer a reforma eleitoral.
Dividido por conflitos internos, desagradou a gregos e troianos. Os
republicanos estavam furiosos com Lafaiete Rodrigues Pereira, ministro
da Justiça, que assinara o Manifesto Republicano de 1870, e agora se
bandeava para o campo liberal. A principal fonte de insatisfação, no
entanto, vinha da política fiscal do ministro da Fazenda, Afonso Celso
de Assis Figueiredo, futuro visconde de Ouro Preto, que tinha fama de
excelente administrador e financista. Para enfrentar as dificuldades
financeiras geradas pelos enormes gastos com a grande seca de 1877 no
norte do país, propôs ele no projeto de lei orçamentária de 1879,
aprovado pela Câmara, vários aumentos de impostos antigos e a introdução
de alguns novos. Atingiu o bolso de todos, proprietários de escravos,
aspirantes a títulos nobiliárquicos, fumantes, amantes do vinho,
comerciantes e simples cidadãos. As medidas mais irritantes foram o novo
imposto sobre vencimentos dos funcionários públicos, o antepassado do
imposto de renda, e a taxa de um vintém sobre o valor das passagens no
transporte urbano.
O novo imposto e a taxa atingiram diretamente duas categorias, os
funcionários públicos e os usuários de bondes. Em 1870, a capital tinha
192 mil habitantes na área urbana, dos quais 11 mil funcionários
públicos, entre civis, militares e eclesiásticos, já que naquela época o
catolicismo era a religião oficial do Estado. Havia quatro grandes
companhias de ferro-carris urbanos, ou de bondes, como ficaram
conhecidos: a Botanical Garden Co., que cobria a zona sul, saindo da rua
Gonçalves Dias, a Cia. de São Cristóvão, concentrada na zona norte, com
ponto final no Largo de São Francisco, a Ferro-carril de Vila Isabel,
que partia da Praça Tiradentes, e a Cia. de Carris Urbanos, que atendia
ao centro, incluindo a zona portuária.
O bonde era um transporte de massa. Cada carro, puxado por animais
sobre trilhos, transportava 30 passageiros. Só as três primeiras
companhias acima listadas transportaram em 1879 mais de 20 milhões de
passageiros. É óbvio que a taxa do vintém jogava muita gente contra o
governo, sobretudo contra o Afonso Vintém, como ficou conhecido o
ministro da Fazenda. Para atingi-los, foram atacadas no dia primeiro as
companhias de bondes, com exceção da Botanical Garden, de propriedade
norte-americana, que se prontificou a pagar ela mesma a taxa.
Desse clima de insatisfação, tiraram vantagem os agitadores
republicanos. Ao que parece, na demonstração de São Cristóvão estavam
presentes, sobretudo, pessoas de melhor situação social, certamente
muitos funcionários públicos. Na do dia 1º, teria entrado em ação a
massa dos usuários mais pobres, acrescida da tropa barra-pesada do
centro e da zona portuária. Não por acaso, os líderes do movimento
perderam o controle da multidão nesse dia.
Embora legal, a taxa do vintém era profundamente impolítica, como se
dizia na época. O ministro fora alertado para as possíveis reações. Mas
Afonso Celso era tão competente quanto teimoso. Pagou por isso alto
preço em 1880, como pagaria em 1889, por ocasião da proclamação da
República. A reação da polícia foi infeliz em 28 de dezembro, ao não
negociar a audiência com o imperador, e imprudente em 1º de janeiro. A
do Exército, simplesmente desastrada.
Os acontecimentos chocaram o Imperador. Em cartas à condessa de
Barral e ao conde de Gobineau, afirmou que em 40 anos de reinado nunca
tinha sido usada a força contra o povo da capital do Império. Não lhe
escapou mesmo a conotação republicana dos incitadores do motim. Afirmou à
condessa que seria mais feliz como presidente de uma república.
Mas a revolta não foi republicana, afirmaram seus próprios líderes.
Muitos interesses feridos nela se fundiram, de grandes e de políticos,
de gente miúda e de simples cidadãos. Uma grande explosão social,
detonada por um pobre vintém.
José Murilo de Carvalho é professor titular da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), membro da Academia Brasileira de Letras, do
IHGB e da Academia Brasileira de Ciências e autor de D. Pedro II: ser ou
não ser. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
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