Metamorfoses Históricas: História, livros, músicas, cinema e motos!

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terça-feira, 24 de julho de 2012


As tradições são criadas pelas culturas ao longo da história. Essas tradições podem ser milenares, seculares, centenárias e romper com isto nem sempre é simples. A situação das meninas na Índia é um desses casos, como tantos outros existentes no mundo, em que a tradição leva a morte ou mutilação. 


Organizações indianas lutam para reduzir feticídio de meninas

DO "GUARDIAN", EM UDAIPUR


Em qualquer outro país, o caso teria se tornado notícia de primeira página: um casal em fuga capturado enquanto tentava enterrar viva sua filha recém-nascida. Mas na Índia, onde hoje nascem 914 meninas para cada mil meninos, o caso acontecido semana passada em Dausa, no Rajasthan, valeu apenas uma reportagem de 300 palavras em uma página interna. "Mais um incidente de indiferença a meninas recém-nascidas" disse o "Deccan Herald".

Indiferença ou tentativa de homicídio, o fato, segundo Zaheer Abbas, é que "a preocupação da maioria dos indianos é comer duas refeições ao dia", e não a defasagem entre o número de meninas e meninos no país, que atingiu sua pior proporção desde a independência, em 1947.
Abbas, editor do "Udaipur Times", um jornal on-line do sul do Rajasthan, no ano passado tentou estimular seus leitores a reagirem publicando a foto de um feto feminino de três meses encontrado em um canal de esgoto perto do centro da cidade.

Marinder Nanu - 15.ago.11/France Presse
Estudantes indianas usam o tradicional vestido Punjabi para uma apresentação de dança folclórica no colégio
Estudantes indianas usam o tradicional vestido Punjabi para uma apresentação de dança folclórica no colégio
"Mas veja", ele disse na semana passada, movendo a tela de seu computador para mostrar o artigo publicado na porção inferior da página. "Um comentário. Só um. Queremos que as pessoas se zanguem com isso, mas elas não desejam discutir o assunto diante de seus pais e amigos".

O feticídio feminino se tornou uma questão em debate graças primordialmente ao "Satyamev Jayate", um programa de TV altamente popular apresentado por Aamir Khan, um astro de Bollywood.

Um programa inteiro foi dedicado à prática cada vez mais frequente de abortar fetos femininos, concentrada especialmente no Rajasthan, um Estado no oeste do país onde a desproporção entre os sexos é uma das mais graves na Índia, tendo caído a 883 meninas por mil meninos em 2011, ante 909 em 2001.
Dias depois de o programa ir ao ar, o governo do Rajasthan entrou em ação. As autoridades prometeram acelerar o processo de punição judicial aos praticantes de aborto definido pelo sexo do feto. Também cancelaram as licenças de seis centros de ultrassonografia e advertiram outros 24 por suspeita de envolvimento em feticídio feminino.

RASTREAMENTO
Também existe uma campanha em curso para instalar sistemas de rastreamento em todos os centros de ultrassonografia do Estado, num prazo de quatro meses, para permitir que os fiscais do governo verifiquem que número de fetos femininos chega ao parto. As clínicas são o campo de batalha para os ativistas que lutam contra o aborto selecionado por sexo.

"Existem motivos substanciais para acreditar que o aumento na desproporção entre os sexos se relaciona diretamente ao crescimento no número de clínicas de ultrassonografia na região", disse Shabnam Aziz, da Action Aid, no Rajasthan.

Arvinder Singh é o rei dos exames pré-natais em Udaipur. As águas calmas e os palácios dos rajputs nessa bela cidade à beira lago ocultam um segredo sombrio: Udaipur é um dos distritos do Rajasthan que "perdeu" meninas entre os recenseamentos de 2001 e 2011. Hoje, nascem 920 meninas para cada mil meninos, ou 28 a menos do que 10 anos atrás.

A cada dia a clínica de Singh realiza cerca de 50 exames pré-natais de ultrassonografia. Um teste de rotina custa 450 rupias (R$ 16) --uma soma que não é insignificante em um país no qual o salário anual médio é de cerca de 61 mil rupias.

Recebendo o "Guardian" em seu consultório, Singh declarou que nenhuma de suas pacientes nos últimos seis meses havia perguntado o sexo de seu bebê --é bem sabido que solicitar essa informação (e fornecê-la) é ilegal sob as leis da Índia.

Mas a ativista local Manisha Bhatnagar afirmou que o Estado do Rajasthan planeja apresentar uma queixa contra Singh, porque inspetores trabalhando disfarçados descobriram que nem todas as pacientes da clínica preenchiam a ficha obrigatória detalhando seu número de filhos, o sexo das crianças e quem as encaminhou para o exame.

"Se o formulário indica que uma mulher já tem duas filhas e procurou a clínica por conta própria, nós abrimos uma investigação", disse Bhatnagar. Seu escritório telefona a mulheres depois da data prevista de parto e, caso elas tenham realizado um aborto ou sofrido um aborto natural, inicia-se uma investigação.

Kirti Avengar, diretora-executiva de obstetrícia e ginecologia da Aarth, uma ONG que trabalha com questões de saúde feminina, em Udaipur, diz que há limites para o que o Estado pode fazer a fim de reprimir o feticídio feminino.

"A tecnologia está se desenvolvendo tão rápido que já se pode prever o sexo de um feto de 12 semanas apenas com o uso de exames de sangue", afirma, acrescentando que o necessário é uma grande virada social e ideológica.

"Na minha opinião, é preciso abandonar a tradição do dote, ou as pessoas sempre encontrarão maneiras de contornar a lei", disse, mostrando um cartaz em hindi que a Aarth distribui, mostrando um primeiro encontro entre os pais de potenciais noivos. "Não peça dote", diz o cartaz, por sobre a foto de uma família de noivo olhando para a potencial noiva e imaginando dinheiro, um carro e uma casa.

Pragnya Joshi, especialista em feticídio feminino no departamento de estudos da mulher da Universidade Janardan Rai Nagar Rajasthan Vidyapeeth, em Udaipur, disse que a cultura do dote era a principal culpada pelo agravamento na desproporção entre os sexos no que tange às crianças da cidade e outras regiões.

Ainda que proibido por lei desde 1961, o dote tem raízes profundas na cultura indiana, ela diz. Uma das bênçãos tradicionais em um casamento hinduísta é "que Deus lhe conceda oito filhos", ela diz.

O que Joshi considera especialmente alarmante é que as estatísticas demonstram que as mulheres urbanas e com bom nível educacional apresentam maior probabilidade de abortar um feto feminino.

"As mulheres alfabetizadas estão se tornando mais propensas ao feticídio feminino", ela disse, explicando que esse grupo tem dinheiro para uma ultrassonografia e compreende os notórios anúncios das clínicas, que recomendam "investir apenas 500 rupias agora para economizar 50 mil preciosas rupias no futuro".

Ainda que a lei contra seleção sexual de bebês pareça ser facilmente violável em Udaipur, nem todas as mulheres fazem abortos. Número perturbador de pais agora abandona as bebês recém-nascidas, algumas das quais são recolhidas pelo Mahesh Ashram, um orfanato no subúrbio dirigido por Yogguru Devendra Agrawal, um religioso de longa barba e voz macia. O ashram espalhou cartazes pela cidade com o slogan: "Não as jogue fora. Traga-as para nós".

AFORTUNADAS
Agrawal aponta para uma menina pequenina, com olhos sorridentes, que está deitada em um dos 16 berços metálicos. "Está vendo aquela menininha alegre? Ela foi encontrada na sarjeta, duas semanas atrás; só sua cabeça estava visível. Tinha nascido há apenas meia hora". Ele mostra outra menina que teve de passar por cirurgia para remover espinhos de seu corpo, porque foi jogada em um arbusto espinhoso.

E elas são as afortunadas. A equipe de Agrawal nem sempre encontra os bebês em tempo. "Uma delas foi abandonada no inverno, bem ao lado de uma torneira mal fechada", ele conta.
Dos 71 bebês que passaram pelo orfanato em cinco anos, 48 foram adotados. Mas as obras no terreno ao lado são prova do pessimismo de Agrawal quanto ao futuro; ele está construindo um orfanato com instalações de cuidado para recém-nascidos que poderá abrigar c bebês e segundo ele será o maior da Índia.

Não é incomum que uma menina indesejada receba um nome horrível, diz Usha Choudhary, diretora de programa da ONG Vikalp ("Alternativa"), que conta com apoio da Action Aid, Unicef e Oxfam. "Conheço meninas que foram batizadas como Mafi, o que quer dizer 'lamento', e Dhapu, que quer dizer 'chega' --ela era a quinta menina da família", diz Choudhary.

Como parte de um esforço para encorajar os aldeões do Rajasthan a celebrar, e não lastimar, o nascimento de uma menina, a Vikalp executa cerimônias alternativas de batismo, dando às meninas nomes como Khushi (Feliz) ou Pari (Anjo).

"Quando nasce um menino, as aldeias tradicionais do Rajasthan explodem em comemoração, com tambores e doces; quando nasce uma menina, a aldeia fica em silêncio", diz Choudhary.
A Vikalp faz trabalhos de divulgação em escolas e aldeias, e se concentra especialmente nos meninos pequenos e nos anciões das aldeias, a fim de levá-las a reavaliar suas opiniões sobre o valor da mulher. "Perguntamos a eles que sociedade vamos ter se esse feticídio feminino continuar. Você consegue imaginar um mundo sem sua mulher, sua mãe, sua namorada, sua irmã?"

Choudhary vê contradição no status inferior da mulher em um país no qual dois dos mais poderosos líderes políticos --Sonia Gandhi, a líder do Partido do Congresso, e Pratibha Patil, a presidente-- são mulheres.

"Às vezes as mulheres nos perguntam por que reclamamos sobre os direitos da mulher quando temos uma mulher presidente", ela diz. "E eu sempre respondo que, na Índia, não bastam duas estrelas para produzir luz".
Tradução de PAULO MIGLIACCI.

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