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sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O índio fora do foco da história

O índio fora do foco da história

Ricardo Carvalho 8 de outubro de 2010 às 17:28h

Para José Ribamar Bessa Freire, a lei que torna obrigatório o ensino da história e cultura indígena é um avanço, mas falta muito para vencer o preconceito

Em 2008, foi sancionada a Lei 11.645, que estabeleceu o ensino obrigatório de história e cultura indígena em todas as séries do Ensino Básico. A lei vem no sentido de complementar outra regulamentação, de 2003, que contemplava as temáticas referentes à cultura africana. O coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indígenas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), José Ribamar Bessa Freire, explica que, de modo geral, os temas indígenas sempre foram abordados nas escolas como uma “nota de pé de página carregada de preconceitos”. Nesta entrevista, concedida ao repórter Ricardo Carvalho, Bessa Freire defende a lei como uma conquista de setores da sociedade brasileira que lutam por esse reconhecimento há pelo menos duas décadas, mas faz questão de ressaltar: a lei é um passo importante, mas pode tornar-se ineficiente caso não venha acompanhada de material didático, atualização das licenciaturas e subsídios aos docentes.

Carta Fundamental: Qual a importância da aprovação da Lei 11.645 para o reconhecimento, pela escola, das temáticas indígenas e africanas?

Bessa Freire: Em primeiro lugar, a lei é uma conquista. Nós, que sempre lutamos para que a escola refletisse sobre essas questões, nos sentimos contemplados. No entanto, não basta só ter uma lei, porque, se existe a obrigação do ensino da temática indígena e africana nas escolas sem capacitação dos professores, sem pesquisa e sem produção de material para auxílio aos professores, o tiro pode sair pela culatra. A escola vai, obrigatoriamente, tocar numa temática que, sem preparo, pode até reforçar aqueles preconceitos e aquelas visões estereotipadas que se davam.

CF: Como a escola brasileira tratou os conteúdos indígenas até antes de eles se tornarem obrigatórios?

BF: Sucintamente, o índio na escola era uma nota de pé de página carregada de preconceitos. Se fosse uma nota de pé de página, mas correta, já teria ocorrido uma contribuição. Mas não, o índio estava fora do foco da história e, quando aparecia, era de forma preconceituosa. Eu me pergunto até que ponto essa escola não devorou a identidade dos brasileiros, na medida em que ignorou duas grandes matrizes formadoras da sociedade brasileira: a indígena e a africana.

CF: Desde quando existe esse esforço pela inclusão da história e da cultura indígena na sala de aula?

BF: É relativamente recente e está muito ligado ao próprio movimento indígena organizado. A partir da Constituição de 1988, abriram-se portas para essa questão. Naquele momento, existiam no País mais de 150 organizações indígenas. No meu entender, foi a conjunção e a atuação dessas organizações que surgiram. Até o fim dos anos 70, éramos nós – antropólogos – que falávamos por eles, inclusive porque não havia uma liderança que dominasse a língua portuguesa de forma articulada. Hoje, os índios não precisam mais de porta-vozes e o nosso papel agora é falar como aliados. Então, nos anos 80, fervilhou no País esse avanço do movimento indígena, que conseguiu, por exemplo, eleger no Rio de Janeiro um deputado federal, o Mário Juruna. Independentemente dos altos e baixos de seu mandato parlamentar, ele jogou o foco do País e da mídia sobre os índios. Isso contribuiu para que, finalmente, chegássemos em 2008 e incorporássemos a questão indígena numa lei que já existia para afrodescendentes, que estavam um pouco mais organizados politicamente. Chamo atenção para os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), nos anos 90, que tocaram no tema também, independentemente das críticas que possamos fazer.

CF: O senhor disse que é preciso dar subsídios para os professores aplicarem a lei. Quais deveriam ser esses subsídios?

BF: Primeiro ponto: interferir nos currículos de licenciatura em todas as universidades públicas e privadas. Segundo: jogar pesado em oficinas e cursos de atualização de professores, pois eles estão ansiosos, estão querendo novos conhecimentos. O terceiro é investir na pesquisa relacionada à temática indígena e o quarto, fazer com que essa pesquisa reflita na produção de material didático e paradidático.

CF: Em relação aos conteúdos, o que deveria ser abordado pelo professor com os alunos?

BF: É preciso, antes de tudo, desconstruir os equívocos que estão arraigados e internalizados e incorporar os avanços das disciplinas acadêmicas que tratam dessas questões, como antropologia, etno-história e linguística. Várias disciplinas produzem dissertações de mestrado e teses de doutorado, mas esses trabalhos não chegam aos professores, ficam retidos na universidade. Em relação aos conteúdos, o professor teria de trabalhar com arte indígena, literatura, poesia, história e línguas indígenas, os etnosaberes.

CF: Ainda na parte de conteúdos, para exemplificar, como o professor deveria abordar aculturação e identidade indígena na sala de aula?

BF: A antropologia trabalhava com essa noção de aculturação, entendendo por aculturação aquele processo de perda da sua própria cultura e migração para a cultura do outro. Mas o que se começou a criticar a partir dos anos 60 e 70? Lévi-Strauss diz que nenhuma cultura morre, apenas se transforma e se ressignifica. Nosso cotidiano está impregnado de empréstimos de outras culturas, mas isso não faz com que o brasileiro deixe de ser brasileiro. Ao contrário, ser brasileiro significa se apropriar daquilo que queremos ou nos é imposto e ressignificar isso dentro da nossa cultura. Isso ocorre para qualquer cultura, seja a brasileira, a norte-americana ou a francesa. Mas, quando chega na cultura indígena, não se permite que o índio aceite o menor elemento de uma contribuição de fora e continue sendo considerado índio. Porque existe um imaginário construído de ideal de índio, aquele da Carta do Descobrimento, de Pero Vaz de Caminha. Hoje, quando uma pessoa encontra um índio de carne e osso, diz que não é índio autêntico, porque tem como autêntica a imagem de 1500. Com esse critério, os portugueses não seriam mais portugueses porque ninguém se veste mais como Cabral, ou escreve e fala como Caminha. Por isso, a ideia do contato das culturas indígenas com a cultura nacional deve ser trabalhada nas escolas com uma perspectiva antropológica. Ou seja, toda cultura é dinâmica, está em permanente transformação e atualização.

CF: Os currículos de licenciatura estão preparados para lidar com a nova demanda gerada pela lei?

BF: As faculdades de educação não estão preparadas, e esta é a notícia ruim. A notícia boa é que estão começando a se preparar, porque existe uma pressão dos próprios professores dos ensinos Médio e Fundamental, dos alunos, da mídia e de nós, de dentro da universidade. Por exemplo, na UERJ, eu já ensinei uma disciplina chamada História Indígena, que não existe nos cursos de História das universidades brasileiras nem sequer como eletiva. Como compreender este país sem história indígena? Eram 10 milhões de índios no Brasil e 1.300 línguas. O que aconteceu com elas? A disciplina História Indígena dirige o foco sobre essa temática e capacita os alunos para entender um pouco esse processo. Outro exemplo: nós desconhecemos a resistência indígena ao processo de escravização. Tem uma tese de doutorado defendida na Universidade de Stanford, nunca traduzida para o português, com um apêndice de mais de cem nomes de líderes indígenas que, num espaço de 80 anos, lideraram rebeliões contra os portugueses só no Baixo Amazonas, e nós não conhecemos nenhum deles.

CF: A lei estabelece que os conteúdos referentes à cultura indígena sejam trabalhados em todo o currículo escolar, com ênfase nas áreas de Artes, História e Literatura. Como professores de outras matérias podem trabalhar a temática?

BF: Na UERJ, temos uma disciplina que discute a implementação da Lei 11.645, então eu tenho alunos de Física, Química, Artes, História, Filosofia e Matemática. Abrimos essa possibilidade, que é uma coisa muito rica. Os alunos dessas licenciaturas trazem problemáticas que, às vezes, não são as nossas, de quem está na área de Educação. Vem um aluno de Matemática e pergunta: “Professor, como os índios somam, multiplicam, enfim, como é a Matemática indígena?” Vem um aluno de Biologia e me faz perguntas sobre os mitos de criação do mundo dos índios, um aluno de Artes pergunta por que a arte indígena é considerada artesanato e não produção artística. Isso vai dando margem para discutirmos essa temática de forma muito mais rica.

CF: O senhor viveu por muito tempo no Peru. Existe uma diferença entre o reconhecimento dos conteúdos indígenas pela escola em relação ao Brasil?

BF: Os países andinos, em geral, estão mais avançados. O Peru, nos anos 70, oficializou a língua quéchua, que se tornou a língua oficial juntamente com o espanhol. O Peru criou um sistema de educação bilíngue que, com todos os altos e baixos, representou um avanço enorme para o país. Mas o Peru está avançado nessa questão até pelo peso demográfico dos índios em sua sociedade e pela visibilidade da cultura indígena em todos os campos. Houve um movimento muito forte de valorização do passado andino e isso é refletido em instituições como o Museo de la Nación e o Museu de Antropologia.


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