Nossas práticas culturais são frutos de algumas dezenas ou centenas de anos. Definimos nossas normas, valores e padrões nos mais variados âmbitos de no nossa sociedade. Ao nos depararmos com o diferente, com aquilo que foge a norma a nossos padrões culturais, percebemos qual a nossa cultura bem como podemos ficar chocados e indignados com este novo padrão que conhecemos.
O caso retratado abaixo é um desses, no qual uma prática cultural, embora sem definir-se sua origem, rompe com os padrões de nossa cultura ao utilizar um animal, que em várias culturas é doméstico, com vários usos, em parte do cardápio alimentar de uma determinada população. Normal, anormal, certo ou errado? Como definir?
13/10/2013
- 03h19
O mercado
ilegal de carne canina no Sudeste Asiático
KATE
HODAL
tradução FRANCESCA ANGIOLILLO
Nguyen Tien Tung é o tipo de homem que você
imaginaria encontrar em um matadouro de Hanói (capital do Vietnã): atlético,
frenético e imundo, com a camiseta branca salpicada de manchas de sangue, os
shorts de jeans frouxos sobre as pernas tesas e arranhadas, os pés espraiados
em sandálias de plástico.
Debruçado sobre sua bancada de metal, entre duas
peças de carne penduradas, o homem de 42 anos vigia seu abatedouro -um pátio de
concreto a céu aberto, que dá para uma rua movimentada.
Outras duas peças sem pele, alvas e brilhantes, são
lavadas por um dos primos de Nguyen. Bem ali ao lado ficam as jaulas, cada uma
com cinco cães, todos mais ou menos do mesmo tamanho, alguns com coleiras.
Nguyen se aproxima de uma jaula e acaricia o cão
mais próximo da porta. Tão logo o bicho começa a abanar o rabo, ele agarra uma
barra de metal e acerta em cheio a cabeça do cão. Depois, rindo alto, bate a
porta da jaula.
Em uma rua do verdejante bairro de Cau Giay, não
muito longe do negócio da família Nguyen, fica um dos restaurantes mais famosos
da cidade, o Quan Thit Cho Chieu Hoa, que só tem uma iguaria no menu.
Há cozido de cachorro, servido em sopa de sangue;
churrasco de cachorro com capim-cidreira e gengibre; cachorro ao vapor com
pasta de camarão; vísceras de cachorro cortadas fininhas como linguiça; e
cachorro no espeto, marinado na pimenta com coentro.
Entre os muitos restaurantes especializados em
carne canina de Cau Giay, esse é o mais cultuado. Nele receitas tradicionais
são servidas em um ambiente tranquilo à beira de um canal.
"Eu sei que soa esquisito que eu coma aqui, já
que eu tenho cachorros e nem me passaria pela cabeça comê-los", diz Duc
Cuong, um médico de 29 anos, enquanto dá uma mordida num bocado de vísceras
caninas que acaba de enrolar numa folha de manjericão. "Carne de cachorro
é gostosa e faz bem."
Ninguém sabe ao certo quando os vietnamitas
começaram a comer carne canina, mas o consumo tem longa tradição. E sua
popularidade vem aumentando: segundo ativistas, hoje 5 milhões de animais são
comidos por ano.
Carne de cachorro é um hit em coquetéis, reuniões
familiares e ocasiões especiais. Supostamente ela aumenta a virilidade, eleva a
temperatura sanguínea nas noites frias e serve como um bom auxiliar
terapêutico. É vista como uma carne abundante, de alto valor proteico, uma
alternativa saudável ao porco, ao frango e à vaca que compõem o menu vietnamita
diário.
Alguns comensais acreditam que, quanto mais o
animal sofre para morrer, mais saborosa é a carne, o que pode explicar a forma
brutal como os cães são abatidos no Vietnã -muitas vezes espancados até a morte
com um tubo de metal (o que pode exigir de 10 a 12 golpes); ou degolados; ou
apunhalados no peito com uma faca imensa; ou ainda queimados vivos.
"Tenho gravações de cães sendo alimentados à
força ao chegarem no Vietnã, um pouco como se faz com gansos para foie
gras", diz John Dalley, um britânico magro aposentado, que dirige a
fundação tailandesa Soi Dog, dedicada ao combate ao comércio de carne canina no
Sudeste Asiático.
"Enfiam um tubo até o estômago dos bichos e
enchem de arroz e água, para aumentar o peso para a venda."
O método de Nguyen para incrementar seu lucro é
mais simples: "Quando quero que pesem mais, coloco uma pedra na boca do
cachorro." E dá de ombros, antes de abrir a jaula para outro abate.
DEMANDA
O governo estima que haja 10 milhões de cães no
Vietnã, onde a carne canina é mais cara que a de porco; um prato dela pode
custar mais de R$ 100 em restaurantes elegantes. A demanda crescente levou os
fornecedores a buscar além dos vilarejos onde tradicionalmente se praticava a
criação para abate, chegando a cidades em todo o país. O roubo de animais -de
rua ou de estimação- se tornou tão comum que ladrões chegam a ser linchados, às
vezes até a morte.
Os efeitos da demanda se espalharam
além-fronteiras, fazendo florescer um mercado multimilionário que despacha 300
mil cães ao ano em gaiolas de metal saindo da Tailândia, pelo rio Mekong, para
o Laos e dali às fronteiras porosas na floresta, sem comida ou água, até
encontrarem a morte nos abatedouros vietnamitas.
É uma indústria baseada no mercado negro, conduzida
por uma máfia internacional, com apoio de funcionários públicos corruptos; não
é de estranhar que ativistas lutem para debelá-la.
"No começo era um punhado de pequenos
comerciantes que almejavam lucros modestos", diz Roger Lohanan, da Thai
Animal Guardians Associations, organização em Bangcoc que desde 1995 investiga
o mercado de carne canina. "Mas agora é um item de exportação fundamental.
É um mercado livre de impostos, com lucro que varia de 300% a 500%, então todo
mundo quer meter a colher nele."
HOBBY
Tha Rae é uma cidadezinha modorrenta no Estado de
Sakon Nakhon, nordeste da Tailândia. Há 150 anos no comércio de carne canina, é
chamada de Vilarejo Açougueiro. Os habitantes dizem que ao menos 5.000 pessoas
-um terço da população- complementa os modestos rendimentos rurais com roubo,
venda ou abate de cães. É um hobby lucrativo: paga-se até R$ 21 por um
vira-lata.
O transporte de cães sem certificado de vacinação
vigente é ilegal na Tailândia. Seu ingresso no Laos sem atestar recolhimento de
taxas e tributos alfandegários, também.
Comê-los não é ilegal, mas não é popular entre os
locais, a maioria dos quais se opõem fortemente ao hábito. Ainda assim, em Tha
Rae, quiosques de rua perto do principal edifício da administração local
oferecem nacos avermelhados de fibrosa carne canina por 300 baht (cerca de R$
21) o quilo.
Dentro de grandes isopores azuis, entre as bancas,
partes esbranquiçadas de cachorro congelado: cabeças, troncos, coxas. "O
povo usa cabeça e pernas na sopa tom yum", explica uma vendedora, enquanto
amamenta seu bebê, "mas dá para usar em muitos outros pratos".
Apesar de ser grande o número de cães
contrabandeados anualmente para o estrangeiro, o braço tailandês da operação é
controlado por pouca gente, diz Edwi Wiek, cofundador da Animal Activis
Alliance, instituição beneficente que visa a extinguir o comércio.
"Sabemos quem são: onde moram, como se chamam;
temos até fotos deles", continua Wiek, cuja organização recebe dados de
informantes na Tailândia e no Laos. "Algumas das fotos mostram até seus
carros -seria fácil rastrear as placas-mas eles se livram porque pagam um
dinheirão [de propina]. E, enquanto continuarem pagando, haverá quem feche os
olhos."
Segundo ativistas, uma dessas pessoas é o prefeito
de Tha Rae, Saithong Lalun, que vive numa casa luxuosa, recém-construída, e se
beneficiaria diretamente dos lucros dessa indústria.
Embora ele tenha se recusado a dar entrevista, dizendo que no passado a mídia causou "sofrimento" a seus eleitores, um político próximo ao prefeito aceita falar anonimamente e diz que o dirigente sabe do comércio porque está envolvido nele.
As operações policiais, porém, aumentaram, graças à
grande rede de informantes trabalhando principalmente com a Marinha Real
Tailandesa.
Em abril, foi interceptado um carregamento de quase
2.000 cães; em maio, outro, de 3.000, que estavam sendo enfiados em barcos para
o Laos.
O líder das operações foi o capitão Surasak
Suwanakesa, 45, comandante naval da patrulha regional do rio Mekong,
responsável por 235 quilômetros da fronteira fluvial entre Tailândia e Laos.
Sua ambição é terminar com o tráfico de carne canina de uma vez por todas.
"É realmente uma vergonha para o país", diz ele, sacudindo a cabeça.
Mas Surasak, que ocupa o posto há nove meses, tem
de enfrentar outros tráficos legais, como o de "yaba"
(metanfetaminas), maconha e pau-rosa. No seu iPad, ele exibe imagens de blitzs
anteriores, nas quais oficiais da Marinha posam em frente a seu
"butim", e depois indica, num mapa, a rota dos contrabandistas de
cachorros.
"Há duas rotas estratégicas principais",
diz. "Os cães são coletados em aldeias ou roubados, vendidos por 200 bath
[R$ 14] cada um e aí mandados a Tha Rae. Os maiores são enviados para o
distrito do norte, Baan Pheng, e dali seguem para a China, enquanto os menores
vão para o Vietnã. Após cinco minutos de travessia, o preço dos cachorros já
aumentou dez vezes. É esse o grande estímulo."
A equipe da Marinha depende de informações de
locais para conseguir atacar o negócio, mas as prisões são poucas e espaçadas,
segundo ativistas, e a maioria dos contrabandistas paga apenas uma pequena
multa e volta ao negócio.
Os cabeças nunca são perseguidos, e os homens que
correm risco real são os que tentam interromper o comércio: numa indústria que
Wiek diz que pode chegar a pagar à máfia tailandesa mais de R$ 4,4 milhões por
ano, pessoas como Surasak significam um grande corte nos lucros dos
contrabandistas.
"O pescoço do comandante antes de mim valia 4
milhões de baht (R$ 14,2 milhões). Não sei quanto vale o meu." Ele sorri.
"Eles são os mesmos, nos mesmos carros, fazendo as mesmas coisas. Quando
pego um, pego com base em todas as infrações possíveis: taxas alfandegárias,
vacinação, licença de transporte. Isso não se fazia antes."
ROTA
A rota usada pelos contrabandistas para chegar ao
Vietnã é a Highway 8, estrada de mão dupla que atravessa as montanhas calcárias
do Laos.
Ainda na Tailândia, os cachorros terão sido socados
em caixas usadas para o transporte de aves ou então em jaulas pesadas de metal,
cada uma com de 12 a 15 animais, seis a oito jaulas em cada caminhão, o que faz
com que cada comboio valha em torno de 160 mil baht (cerca de R$ 11.260).
De noite, eles são conduzidos até a fronteira,
antes de cruzar o Mekong e serem transferidos para outros caminhões. Com o
apoio de informantes, placas frias e GPS, os contrabandistas não encontrarão
obstáculos dali em diante. "Uma vez no Laos, nada os detêm", suspira
um informante tailandês.
Tomo um ônibus na mesma rota e vejo um caminhão de
cachorros viajando solitário, com as gaiolas vazias, de regresso à fronteira
tailandesa.
"O tio do meu amigo ajuda a carregar os
caminhões às vezes, quando ele não está trabalhando nas plantações de
arroz", diz o estudante no assento ao lado do meu, que justamente começava
a discorrer sobre a tradição de comer carne canina no Laos quando o nosso
ônibus chega a um café.
Dentro dele, dois policiais enfiam um cachorro numa
saca de arroz vazia; eles a giram e a amarram com uma corda. A saca se agita
violentamente. "Talvez eles façam uma festa hoje à noite", diz o
estudante, enquanto os policiais voltam a tomar seu café.
A travessia da fronteira vietnamita se dá em um
posto remoto na montanha, administrado por policiais que pedem dólares para
carimbar seu passaporte.
Seria fácil atravessar o que quer que fosse por
aqui, ou assim parece: a estrada está cheia de caminhões de madeira levando
carregamentos de pau-rosa, madeira supostamente protegida, e os policiais que
não estão dormindo estão claramente ocupados negociando propinas.
A estrada segue montanha abaixo até a cidade de
Vinh, passando por antigas escolas francesas do período colonial e por novas
casas com torreões que parecem saídos de contos de fadas. Por ali circula um
sem-fim de caminhões carregados de cães, diz Zuong Nguyen, 38, um motorista de
ônibus com olhar alucinado que faz o trajeto de seis horas entre Vinh e Hanói
todas as noites. "Esses caminhões sempre trazem cachorros, mas ultimamente
andei vendo gatos também."
KATE HODAL é correspondente do jornal "The
Guardian" no Sudeste Asiático.
FRANCESCA ANGIOLILLO, 41, é editora-adjunta da "Ilustríssima".
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2013/10/1355194-o-mercado-ilegal-de-carne-canina-no-sudeste-asiatico.shtml
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