Metamorfoses Históricas: História, livros, músicas, cinema e motos!

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quinta-feira, 17 de outubro de 2013



Nossas práticas culturais são frutos de algumas dezenas ou centenas de anos. Definimos nossas normas, valores e padrões nos mais variados âmbitos de no nossa sociedade. Ao nos depararmos com o diferente, com aquilo que foge a norma a nossos padrões culturais, percebemos qual a nossa cultura bem como podemos ficar chocados e indignados com este novo padrão que conhecemos. 

O caso retratado abaixo é um desses, no qual uma prática cultural, embora sem definir-se sua origem, rompe com os padrões de nossa cultura ao utilizar um animal, que em várias culturas é doméstico, com vários usos, em parte do cardápio alimentar de uma determinada população. Normal, anormal, certo ou errado? Como definir?
 

13/10/2013 - 03h19 

O mercado ilegal de carne canina no Sudeste Asiático

KATE HODAL                                tradução FRANCESCA ANGIOLILLO


Nguyen Tien Tung é o tipo de homem que você imaginaria encontrar em um matadouro de Hanói (capital do Vietnã): atlético, frenético e imundo, com a camiseta branca salpicada de manchas de sangue, os shorts de jeans frouxos sobre as pernas tesas e arranhadas, os pés espraiados em sandálias de plástico. 

Debruçado sobre sua bancada de metal, entre duas peças de carne penduradas, o homem de 42 anos vigia seu abatedouro -um pátio de concreto a céu aberto, que dá para uma rua movimentada. 

Outras duas peças sem pele, alvas e brilhantes, são lavadas por um dos primos de Nguyen. Bem ali ao lado ficam as jaulas, cada uma com cinco cães, todos mais ou menos do mesmo tamanho, alguns com coleiras. 

Nguyen se aproxima de uma jaula e acaricia o cão mais próximo da porta. Tão logo o bicho começa a abanar o rabo, ele agarra uma barra de metal e acerta em cheio a cabeça do cão. Depois, rindo alto, bate a porta da jaula. 

Em uma rua do verdejante bairro de Cau Giay, não muito longe do negócio da família Nguyen, fica um dos restaurantes mais famosos da cidade, o Quan Thit Cho Chieu Hoa, que só tem uma iguaria no menu. 

Há cozido de cachorro, servido em sopa de sangue; churrasco de cachorro com capim-cidreira e gengibre; cachorro ao vapor com pasta de camarão; vísceras de cachorro cortadas fininhas como linguiça; e cachorro no espeto, marinado na pimenta com coentro.
Entre os muitos restaurantes especializados em carne canina de Cau Giay, esse é o mais cultuado. Nele receitas tradicionais são servidas em um ambiente tranquilo à beira de um canal. 

"Eu sei que soa esquisito que eu coma aqui, já que eu tenho cachorros e nem me passaria pela cabeça comê-los", diz Duc Cuong, um médico de 29 anos, enquanto dá uma mordida num bocado de vísceras caninas que acaba de enrolar numa folha de manjericão. "Carne de cachorro é gostosa e faz bem." 

Ninguém sabe ao certo quando os vietnamitas começaram a comer carne canina, mas o consumo tem longa tradição. E sua popularidade vem aumentando: segundo ativistas, hoje 5 milhões de animais são comidos por ano. 

Carne de cachorro é um hit em coquetéis, reuniões familiares e ocasiões especiais. Supostamente ela aumenta a virilidade, eleva a temperatura sanguínea nas noites frias e serve como um bom auxiliar terapêutico. É vista como uma carne abundante, de alto valor proteico, uma alternativa saudável ao porco, ao frango e à vaca que compõem o menu vietnamita diário. 

Alguns comensais acreditam que, quanto mais o animal sofre para morrer, mais saborosa é a carne, o que pode explicar a forma brutal como os cães são abatidos no Vietnã -muitas vezes espancados até a morte com um tubo de metal (o que pode exigir de 10 a 12 golpes); ou degolados; ou apunhalados no peito com uma faca imensa; ou ainda queimados vivos. 

"Tenho gravações de cães sendo alimentados à força ao chegarem no Vietnã, um pouco como se faz com gansos para foie gras", diz John Dalley, um britânico magro aposentado, que dirige a fundação tailandesa Soi Dog, dedicada ao combate ao comércio de carne canina no Sudeste Asiático. 

"Enfiam um tubo até o estômago dos bichos e enchem de arroz e água, para aumentar o peso para a venda." 

O método de Nguyen para incrementar seu lucro é mais simples: "Quando quero que pesem mais, coloco uma pedra na boca do cachorro." E dá de ombros, antes de abrir a jaula para outro abate. 

DEMANDA
 
O governo estima que haja 10 milhões de cães no Vietnã, onde a carne canina é mais cara que a de porco; um prato dela pode custar mais de R$ 100 em restaurantes elegantes. A demanda crescente levou os fornecedores a buscar além dos vilarejos onde tradicionalmente se praticava a criação para abate, chegando a cidades em todo o país. O roubo de animais -de rua ou de estimação- se tornou tão comum que ladrões chegam a ser linchados, às vezes até a morte. 

Os efeitos da demanda se espalharam além-fronteiras, fazendo florescer um mercado multimilionário que despacha 300 mil cães ao ano em gaiolas de metal saindo da Tailândia, pelo rio Mekong, para o Laos e dali às fronteiras porosas na floresta, sem comida ou água, até encontrarem a morte nos abatedouros vietnamitas. 

É uma indústria baseada no mercado negro, conduzida por uma máfia internacional, com apoio de funcionários públicos corruptos; não é de estranhar que ativistas lutem para debelá-la. 

"No começo era um punhado de pequenos comerciantes que almejavam lucros modestos", diz Roger Lohanan, da Thai Animal Guardians Associations, organização em Bangcoc que desde 1995 investiga o mercado de carne canina. "Mas agora é um item de exportação fundamental. É um mercado livre de impostos, com lucro que varia de 300% a 500%, então todo mundo quer meter a colher nele." 

HOBBY
 
Tha Rae é uma cidadezinha modorrenta no Estado de Sakon Nakhon, nordeste da Tailândia. Há 150 anos no comércio de carne canina, é chamada de Vilarejo Açougueiro. Os habitantes dizem que ao menos 5.000 pessoas -um terço da população- complementa os modestos rendimentos rurais com roubo, venda ou abate de cães. É um hobby lucrativo: paga-se até R$ 21 por um vira-lata. 

O transporte de cães sem certificado de vacinação vigente é ilegal na Tailândia. Seu ingresso no Laos sem atestar recolhimento de taxas e tributos alfandegários, também.
Comê-los não é ilegal, mas não é popular entre os locais, a maioria dos quais se opõem fortemente ao hábito. Ainda assim, em Tha Rae, quiosques de rua perto do principal edifício da administração local oferecem nacos avermelhados de fibrosa carne canina por 300 baht (cerca de R$ 21) o quilo. 

Dentro de grandes isopores azuis, entre as bancas, partes esbranquiçadas de cachorro congelado: cabeças, troncos, coxas. "O povo usa cabeça e pernas na sopa tom yum", explica uma vendedora, enquanto amamenta seu bebê, "mas dá para usar em muitos outros pratos". 

Apesar de ser grande o número de cães contrabandeados anualmente para o estrangeiro, o braço tailandês da operação é controlado por pouca gente, diz Edwi Wiek, cofundador da Animal Activis Alliance, instituição beneficente que visa a extinguir o comércio.
"Sabemos quem são: onde moram, como se chamam; temos até fotos deles", continua Wiek, cuja organização recebe dados de informantes na Tailândia e no Laos. "Algumas das fotos mostram até seus carros -seria fácil rastrear as placas-mas eles se livram porque pagam um dinheirão [de propina]. E, enquanto continuarem pagando, haverá quem feche os olhos." 

Segundo ativistas, uma dessas pessoas é o prefeito de Tha Rae, Saithong Lalun, que vive numa casa luxuosa, recém-construída, e se beneficiaria diretamente dos lucros dessa indústria.

Embora ele tenha se recusado a dar entrevista, dizendo que no passado a mídia causou "sofrimento" a seus eleitores, um político próximo ao prefeito aceita falar anonimamente e diz que o dirigente sabe do comércio porque está envolvido nele. 

As operações policiais, porém, aumentaram, graças à grande rede de informantes trabalhando principalmente com a Marinha Real Tailandesa. 

Em abril, foi interceptado um carregamento de quase 2.000 cães; em maio, outro, de 3.000, que estavam sendo enfiados em barcos para o Laos. 

O líder das operações foi o capitão Surasak Suwanakesa, 45, comandante naval da patrulha regional do rio Mekong, responsável por 235 quilômetros da fronteira fluvial entre Tailândia e Laos. Sua ambição é terminar com o tráfico de carne canina de uma vez por todas. "É realmente uma vergonha para o país", diz ele, sacudindo a cabeça.
Mas Surasak, que ocupa o posto há nove meses, tem de enfrentar outros tráficos legais, como o de "yaba" (metanfetaminas), maconha e pau-rosa. No seu iPad, ele exibe imagens de blitzs anteriores, nas quais oficiais da Marinha posam em frente a seu "butim", e depois indica, num mapa, a rota dos contrabandistas de cachorros. 

"Há duas rotas estratégicas principais", diz. "Os cães são coletados em aldeias ou roubados, vendidos por 200 bath [R$ 14] cada um e aí mandados a Tha Rae. Os maiores são enviados para o distrito do norte, Baan Pheng, e dali seguem para a China, enquanto os menores vão para o Vietnã. Após cinco minutos de travessia, o preço dos cachorros já aumentou dez vezes. É esse o grande estímulo."




A equipe da Marinha depende de informações de locais para conseguir atacar o negócio, mas as prisões são poucas e espaçadas, segundo ativistas, e a maioria dos contrabandistas paga apenas uma pequena multa e volta ao negócio. 

Os cabeças nunca são perseguidos, e os homens que correm risco real são os que tentam interromper o comércio: numa indústria que Wiek diz que pode chegar a pagar à máfia tailandesa mais de R$ 4,4 milhões por ano, pessoas como Surasak significam um grande corte nos lucros dos contrabandistas. 

"O pescoço do comandante antes de mim valia 4 milhões de baht (R$ 14,2 milhões). Não sei quanto vale o meu." Ele sorri. "Eles são os mesmos, nos mesmos carros, fazendo as mesmas coisas. Quando pego um, pego com base em todas as infrações possíveis: taxas alfandegárias, vacinação, licença de transporte. Isso não se fazia antes." 

ROTA
 
A rota usada pelos contrabandistas para chegar ao Vietnã é a Highway 8, estrada de mão dupla que atravessa as montanhas calcárias do Laos. 

Ainda na Tailândia, os cachorros terão sido socados em caixas usadas para o transporte de aves ou então em jaulas pesadas de metal, cada uma com de 12 a 15 animais, seis a oito jaulas em cada caminhão, o que faz com que cada comboio valha em torno de 160 mil baht (cerca de R$ 11.260). 

De noite, eles são conduzidos até a fronteira, antes de cruzar o Mekong e serem transferidos para outros caminhões. Com o apoio de informantes, placas frias e GPS, os contrabandistas não encontrarão obstáculos dali em diante. "Uma vez no Laos, nada os detêm", suspira um informante tailandês. 

Tomo um ônibus na mesma rota e vejo um caminhão de cachorros viajando solitário, com as gaiolas vazias, de regresso à fronteira tailandesa. 

"O tio do meu amigo ajuda a carregar os caminhões às vezes, quando ele não está trabalhando nas plantações de arroz", diz o estudante no assento ao lado do meu, que justamente começava a discorrer sobre a tradição de comer carne canina no Laos quando o nosso ônibus chega a um café. 

Dentro dele, dois policiais enfiam um cachorro numa saca de arroz vazia; eles a giram e a amarram com uma corda. A saca se agita violentamente. "Talvez eles façam uma festa hoje à noite", diz o estudante, enquanto os policiais voltam a tomar seu café. 

A travessia da fronteira vietnamita se dá em um posto remoto na montanha, administrado por policiais que pedem dólares para carimbar seu passaporte. 

Seria fácil atravessar o que quer que fosse por aqui, ou assim parece: a estrada está cheia de caminhões de madeira levando carregamentos de pau-rosa, madeira supostamente protegida, e os policiais que não estão dormindo estão claramente ocupados negociando propinas. 

A estrada segue montanha abaixo até a cidade de Vinh, passando por antigas escolas francesas do período colonial e por novas casas com torreões que parecem saídos de contos de fadas. Por ali circula um sem-fim de caminhões carregados de cães, diz Zuong Nguyen, 38, um motorista de ônibus com olhar alucinado que faz o trajeto de seis horas entre Vinh e Hanói todas as noites. "Esses caminhões sempre trazem cachorros, mas ultimamente andei vendo gatos também." 
 

KATE HODAL é correspondente do jornal "The Guardian" no Sudeste Asiático.

FRANCESCA ANGIOLILLO, 41, é editora-adjunta da "Ilustríssima".

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2013/10/1355194-o-mercado-ilegal-de-carne-canina-no-sudeste-asiatico.shtml

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