O século foi marcado por inúmero conflitos que envolveram os países europeus, principalmente, e EUA em intervenções diretas ou indiretas nos continentes africano e asiático. Pós Segunda Guerra Mundial, o processo de independência e descolonização desses territórios foi ocorrendo aos poucos, mas as mazelas deixadas por séculos de ocupação, exploração, preconceitos e racismo se manteve.
Um exemplo, de tantos possíveis, das consequências históricas desse processo é a questão dos refugiados e de como a mídia internacional não retrata como os países europeus são responsáveis diretos por essa situação, retratando as "buscas" e "salvamentos" como atos heroicos. Não se desmerece nem minimiza-se a importância humanitária dessas ações, mas sim se questiona e coloca em discussão as formas como a história é cada dia mais rapidamente esquecida, quando é conveniente.
Mediterrâneo, um mar de hipocrisia
por Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais — publicado 21/05/2015 02h47
Países ocidentais patrocinam guerras e intervenções, mas são apresentados como heróis na tragédia da imigração
Por Rossana Reis e Deisy Ventura
Nas últimas semanas, as notícias sobre a morte de milhares de seres humanos no Mar Mediterrâneo acabaram por revelar uma faceta muito desagradável de nós mesmos: a nossa infinita capacidade de eludir os fatos e tragar narrativas falsas, simplistas e unilaterais. A despeito dos acontecimentos, acalentamos nossa imaginação geopolítica na qual o papel dos heróis é invariavelmente representado pelos países ocidentais.
“Tráfico de pessoas” – grita a chamada de programas de televisão, enquanto mostramnegros sendo resgatados de navios indo a pique. Enquanto os náufragos recebem coletes alaranjados, o locutor descreve aajuda humanitária da Europa, passando a seguir à imagem do elegante primeiro-ministro italiano a anunciar o seu plano para lidar com a crise: “afundar os barcos” por meio dos quais os candidatos a refúgio tentam chegar a Europa.
Eventualmente, algum dos passageiros é entrevistado para ilustrar as condições deploráveis nas quais se faz a travessia, mas os milhares de africanos mortos não merecem, por exemplo, o tratamento pessoal dado às vítimas do acidente que vitimou 150 pessoas com a queda do Airbus A320 da Germanwings na França. É raro encontrar alguma reportagem em que a “voz autorizada a explicar” as repetidas tragédias não seja europeia.
Soa como desfaçatez, porém, falar sobre os resgates ou os naufrágios no Mediterrâneo sem mencionar os milhões de pessoas atingidas por conflitos armados, notadamente as guerras na Síria e na Líbia, e sem registrar, sobretudo, o papel ativo, se não o protagonismo, dos países ocidentais, liderados pelos Estados Unidos, no desenvolvimento desses conflitos – seja por razões geopolíticas ou econômicas.
Somente na Síria, desde 2011, já se contam 130 mil mortos; mais de 2 milhões de pessoas foram buscar abrigo em países vizinhos e acabaram em campos de refugiados; mais de 4 milhões de pessoas tiveram que abandonar suas casas. Na Líbia, onde em 2011 o ditador Muamar Kadafi foi assassinado em frente às câmaras de TV após uma intervenção da OTAN, autorizada pela ONU, a continuidade dos conflitos ajuda a produzir mortos aos milhares e refugiados aos milhões.
Se pudesse, você não tentaria fugir de situação semelhante? Mas são poucas as pessoas que sobrevivem a esta dura realidade e conseguem dinheiro suficiente para tentar escapar pelas rotas do Mar Mediterrâneo que levam à Europa. Entre aqueles que chegam, um número ainda mais reduzido consegue ter reconhecida a sua situação como refugiado – o que torna possível pensar em reconstruir a vida, pelo menos enquanto a situação em seus países de origem não se estabiliza.
A maior parte das pessoas aguarda “num centro de detenção para imigrantes” ou é mandada de volta ao lugar de origem, em um processo cujas garantias jurídicas oferecidas são mínimas. Os que conseguem permanecer na Europa, em geral, servem como bodes expiatórios de um mal-estar cultural profundo, de uma crise de representação política sem precedentes e da crise econômica. Já o quinhão de responsabilidade da Europa nos desastres humanitários que os empurram de suas terras ainda está longe de ser plenamente apurada.
Isso ocorre porque, ao mesmo tempo em que patrocinam guerras em outros continentes, os países europeus tornam mais restritivas suas regras para concessão de refúgio. Como cortina de fumaça, os líderes do Velho Continente promovem operações humanitárias para resgatar os possíveis imigrantes das mãos dos “verdadeiros culpados pela crise”, os traficantes de pessoas que são majoritariamente africanos, além de tomar as devidas providências para que a travessia não seja feita, em nenhuma circunstância. Vale a pena lembrar que, antes da eclosão da mais recente crise, esta já era uma rota bastante utilizada, e igualmente perigosa. Ainda assim, o governo italiano proibiu os barcos de pescadores da Sicília de prestar ajuda a qualquer tipo de embarcação em situação de risco, sob risco de serem acusados de “cumplicidade com a imigração ilegal”.
Ao longo dos anos, a combinação de “intervenções humanitárias” mal pensadas e mal conduzidas com políticas restritivas e discriminatórias de gestão de fluxos migratórios e de refugiados pela União Europeia vem provocando a morte de milhares de seres humanos no Mediterrâneo, e também vem afogando a todos nós num mar de hipocrisia. Nesta triste fábula da política contemporânea, os únicos heróis são aqueles que conseguem sobreviver às guerras, à intolerância, à política europeia, às ondas e à nossa apatia.
*Rossana Reis e Deisy Ventura são professoras da Universidade de São Paulo e integrantes do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.
Fonte: <http://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-grri/mediterraneo-um-mar-de-hipocrisia-2718.html> Acesso em 27 mai. 2015.