As transformações da tecnologia da informação nas duas últimas décadas modificaram a forma de convivência entre as pessoas e sociedades. A rapidez na troca de informações e conhecimentos alcança a cada dia um ritmo mais acelerado, ao mesmo tempo que ficamos cada dia mais vulneravéis, no sentido de termos nossa privacidade invadida, seja por nossas próprias ações na rede mundial de computadores, seja pelas práticas de acesso a informações confidenciais cada dia mais agressivas. O Big Brother ganha forma e poder cada vez maior!
Quem é o Grande Irmão?
Por: Keila Grinberg Publicado em 21/06/2013
Li recentemente que, depois de Edward Snowden, ex-funcionário da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA, sigla em inglês), ter vazado informações sobre programas de inteligência do país, a venda de exemplares do livro 1984, de George Orwell, cresceu mais de 7.000% no site da Amazon.
Achei curioso. Não pela relação, algo óbvia, entre o best-seller
escrito em 1948 e publicado pela primeira vez, coincidentemente, no dia
8 de junho, quando estourava o escândalo, e o evento do mês. Afinal,
1984 é justamente a história de uma sociedade na qual o controle total é
exercido pelo Grande Irmão, o Big Brother.
Embora inspirado diretamente nos regimes totalitários das décadas de
1930 e 1940, no livro, a história se passa em uma sociedade
liberal-democrática, na qual Winstom Smith, o personagem principal,
representa o cidadão comum vigiado o dia inteiro pelas teletelas e pelo
Partido.
No romance, Smith sabe que toda atitude suspeita é passível de
denúncia à Polícia do Pensamento e que qualquer ato considerado
dissidente pode originar uma denúncia. O que Snowden está mostrando é
que, ao usar serviços de empresas como o Skype, o Google (“don’t be evil”),
o Facebook e a Verizon (esta última, empresa de telefonia
norte-americana), nossas conversas podem ser ouvidas em tempo real,
nossos e-mails podem ser lidos, nossas ligações telefônicas
podem ser rastreadas. A diferença é que ninguém precisa denunciar. Nós
mesmos alegremente abrimos mão da nossa privacidade, continuando a usar
os serviços dos gigantes da internet. Ou você viu por aí alguém
protestando contra o uso do gmail?
Ironias da história
Orwell imaginou um mundo de vigilância total, mas ele mesmo viveu uma
realidade totalmente diferente desta. Ao mesmo tempo em que publicava 1984,
Orwell mandava sua própria lista de suspeitos de comunismo a sua amiga
Celia Kirwan, que trabalhava no Information Research Department (IRD) do
Foreign Office inglês. A lista contém 38 nomes de jornalistas e
escritores que, segundo sua opinião, “eram cripto-comunistas” ou
simpatizantes.
Claro que, como todo texto tem seu contexto de produção, a lista de
Orwell também tem sua época. Ele era um importante liberal
antissoviético e, em 1949, muito doente, quatro anos depois da
publicação de seu libelo A revolução dos bichos, estava
convencido de que a Inglaterra e os demais países ocidentais perderiam a
guerra ideológica contra a União Soviética. O que, evidentemente, não o
desculpa. Ainda mais ao sabermos que seu caderninho de anotações
continha várias outras observações, como as variações pejorativas do
termo “judeu” (“judeu polonês”, “judeu inglês”), chegando mesmo a se
perguntar se Charlie Chaplin seria um deles (não era).
A lista e o caderninho de Orwell só tornam mais irônico o fato de ter se tornado, post mortem
– ele faleceria no início de 1950 –, o símbolo da independência
política e da defesa da liberdade de pensamento contra os excessos de
qualquer Estado. Quem lê 1984 hoje, “um livro péssimo”, segundo o já bastante deprimido Orwell, procura essa reflexão.
Mas irônico mesmo é saber que Orwell foi genial ao imaginar e
descrever uma sociedade que ele de fato não chegaria a conhecer, mas não
teria como antever que seu caderno de anotações e suas listas de
suspeitos seriam hoje desnecessários: na era da conexão total, nós nos
tornamos informantes de nós mesmos.
Em tempo: a lista de Orwell pode ser consultada no Arquivo Nacional inglês, em Londres, arquivada sob o número FO 1110/189. Um bom texto sobre o assunto foi escrito por Timothy Ash na revista New York Review of Books, em 2003.
Fonte: http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/em-tempo/quem-e-o-grande-irmao/view